Julho de 1969
O comboio balouçava ao passar cada emenda dos carris. Contar os ressaltos teria sido uma boa maneira de passar o tempo se não tivesse na cabeça um turbilhão de pensamentos. De cada lado sentava-se um agente da PIDE, repousando os pés deles sobre os seus próprios sapatos, uma medida de segurança, tinham-lhe dito, uma humilhação pensava o Álvaro.
Tinha sido detido na fronteira em Valença. Regressava da Bélgica para passar uns dias de férias com a mãe e os amigos, em Âncora, pequena vila encostada ao mar. O mar que o viu nascer e crescer, a terra que lhe negou o sustento digno e suficiente, obrigando-o a emigrar para longe, mais para o norte, junto ao mar, como em Âncora.
Por lá foi aprendendo os porquês da emigração, ficou a saber mais das Províncias Ultramarinas que o regime dizia que eram nossas, quando todo o mundo dizia o contrário e condenava Portugal como potência colonial. Por lá assistira a reuniões de opositores a Salazar, que pregavam a liberdade e a democracia. Nunca se envolvera muito, o trabalho estava primeiro e a vida de emigrante não deixa tempo livre.
Na fronteira, quando entregou o passaporte ao funcionário da alfândega, nunca pensou que estariam à sua espera e lembra-se de apenas desejar que o comboio partisse logo, para abraçar a sua velha mãe, agora tão perto.
Os PIDES apresentaram-se sem alarido, nada de cenas à moda de Hollywood, simplesmente perguntaram-lhe o nome, como se não soubessem, e deram-lhe voz de prisão em tom perfeitamente casual. Antes de se sentarem ao seu lado, um deles fez questão de lhe mostrar disfarçadamente a arma que trazia ao cinto dizendo em voz baixa, “ o último que levei para o Porto quis fugir e tive que lhe dar dois tiros”.
Aquilo gelou-lhe o coração, a ameaça dita sem sentimento, como quem atira um caroço pela janela, o ar indiferente como os esbirros da polícia política encaravam a prisão de alguém que eles não conheciam, que não tinha cometido nenhum crime, que nem sequer tinha tomado parte em acções subversivas, que apenas tinha aprendido a desprezar a ordem imposta sobre um povo ignorante.
No Porto passou a noite na sede da R. do Heroísmo e no dia seguinte foi metido numa carrinha fechada com mais três indivíduos. Horas depois, meio cego com a luz forte de uma tarde de Julho, entrou na sinistra sede da Rua António Maria Cardoso em Lisboa.
Ao empurrão introduziram-no na sala onde um agente preencheu vagarosamente uma ficha com os seus dados pessoais. Quando terminaram, foi informado que ia ao médico, limitando-se este a examinar os papéis recem preenchidos. Perguntou-lhe se se queixava de alguma coisa e a rematar aquela caricatura de acto médico, atirou-lhe com ar cínico, “veja lá, não se queixe muito quando um dia sair daqui”. Mais outro balde de água fria a juntar aos anteriores, mas o que mais o apoquentava era a incerteza do que se iria passar, o desconhecido, mais até que o medo da tortura, que ouvira falar nas reuniões, na Bélgica. Como estava longe a Bélgica, era agora parte do passado e só de lá tinha saído há três dias.
Foi levado para uma pequena sala quase vazia, apenas uma velha e carunchosa secretária ocupava um dos cantos. Mandaram-no permanecer de pé várias horas, ao fim das quais começaram a interrogá-lo. Dois tipos, as ameaças de mil e um terrores se não respondesse com verdade a tudo.
O que fazia, com quem trabalhava, que portugueses é que conhecia na Bélgica, a quem escrevia para Portugal, quem eram os delegados sindicais da fábrica onde trabalhava, como se chamavam os homens do Partido Comunista, o que faziam os agitadores, onde viviam, como contactavam… Mil perguntas, mil vezes repetidas.
Só uma vez o PIDE que o estava a interrogar lhe deu uma bofetada. Mais para o acordar do que para doer. Preferiam pisar-lhe os pés, já massacrados pelas horas incontáveis de interrogatório e de estátua. Várias vezes se foi abaixo das pernas, logo espevitados com umas caneladas sabiamente aplicadas.
Quando o agente ameaçador saía por instantes da sala, logo o outro que se mantinha quase sempre em silêncio, vinha solicito tentar convencê-lo a falar, “sabe como é, tenho colegas violentos, que não tem paciência para nada. O melhor era você dizer tudo o que sabe para eu poder ajudá-lo”. Tudo falso, tudo combinado entre eles, que muitas vezes colocavam um bufo na cela dos novos para os ouvir “despejar o saco” entre eles.
Eles revezavam-se, voltavam as ameaças, as pisadelas, nunca batiam onde pudessem ficar marcas, tornava a escutar os conselhos do PIDE que dizia querer ajudar. Queria-se rir, chamar-lhes filhos da puta, já lhe disse sem conta que não conhecia ninguém do Partido Comunista, nem estudantes, nem operários, nem nada… Só venho a Portugal de férias para ver a minha mãe. O meu irmão anda embarcado num barco mercante… Sei lá qual é o barco!
Recorda-se de o terem levado para a cela, os pés inchados, quase não conseguia tirar os sapatos, não soube a que horas entrou, quanto tempo o deixaram descansar, um sono agitado, sonhou que caía a um poço, talvez o tivessem empurrado, nunca mais chegava lá abaixo.
Voltaram a metê-lo dentro de uma carrinha fechada, desta vez só, sentia-se dentro do poço do sonho, percebia as voltas, muitas voltas que deu até se encontrar dentro do Forte de Caxias.
Tudo pintado de branco, o Álvaro avançava penosamente, arrastando os pés, os olhos ardiam-lhe da intensidade da luz. Mais papéis para preencher, um molho de roupa, “vamos” disse-lhe o guarda virando-lhe as costas, sem se importar em saber se o seguia ou não.
A cela branca, a cama em cimento com estrado de madeira, uma luz fraca, um balde. Dois metros para lá, dois metros para cá. Um dia no isolamento pareceu-lhe uma semana, a semana pareceu-lhe um mês. Voltou à sala de interrogatório, os camaradas das celas vizinhas disseram palavras de alento “Aguenta-te rapaz que eles não valem nada”.
Aguentou-se, também não tinha nada para contar, disse-lhes tantas vezes “vocês prenderam-me por engano”, riram-se, não acreditavam. Os pés, as pernas, os joelhos estavam novamente inchados, quase não conseguia andar no regresso à cela. Teve de ser amparado pelo guarda que o levou para outra cela, a 157. Já lá estavam três prisioneiros que o olharam com desconfiança.
- De onde és, pá?
- De Âncora.
- Onde fica isso?
- No norte, perto de Viana.
- Aquela é a tua cama. Vai-te deitar que tens essas pernas uma miséria. Cambada de filhos da puta. Não adiantou nada o velho ter caído da cadeira, o Marcelo é a mesma merda!
Não regressou aos interrogatórios, parecia que se tinham esquecido dele. O irmão visitou-o duas vezes enquanto o barco esteve atracado em Lisboa. As semanas passaram, aprendeu muito de política nesses dias, em conversa com os seus companheiros.
“Senhor Álvaro, pegue nas suas coisas e venha comigo” dissera-lhe o guarda que o conduziu à portaria sul onde o esperavam para o meter, junto com a mala que trouxera da Bélgica, na malfadada carrinha fechada.
Mais voltas pela cidade, pára a viatura, abre-se a porta traseira, é-lhe dito para sair. A carrinha arranca novamente, o Álvaro vê-se só na rua de prédios antigos, ao fundo o rio, muito ao fundo.
Passa um táxi, faz-lhe sinal, manda-o seguir para Santa Apolónia. Era noite quando chegou a casa, os amigos vieram visitá-lo, logo que souberam da sua chegada. Não lhe apetecia sair, não queria sair de casa, passava horas deitado sobre a cama a olhar para o tecto, vendo as espirais de fumo do cigarro perderem-se no ar.
Ainda voltou a ser ameaçado pelo agente da PIDE de Caminha, o Mendes que lhe disse com ar de superioridade, “veja lá senhor Álvaro, veja lá, é melhor não se meter mais em problemas”.
Devolveram-lhe o passaporte, no dia seguinte meteu-se no comboio em direcção a Bruxelas. Voltou a Portugal em Agosto de 1974, quando os PIDES já estavam presos ou em fuga.