Ouvem-se as sirenes das fábricas a anunciar a fim de um turno e o princípio de outro, 2 horas menos 5 minutos de uma tarde de verão, mas que podia ser de inverno. Odete arruma a bata dentro da bolsa onde cabe também a marmita agora vazia. A massa humana cruza-se nos corredores da fábrica, uns a sair outros a entrar. A azáfama em volta dos cartões de ponto num matraquear constante… E é bom que não avarie ou os cartões terão que ser assinados uma a um pelo chefe de turno que nestas alturas parece que faz de propósito para demorar - “primeiro os que vão iniciar o turno”, grita ele – “mas Sr. Faria, eu tenho a carreira para apanhar”, dizem algumas mulheres no afã de saírem. “Paciência” – grita o Faria. Mas naquele dia não… O relógio funcionou, sempre naquele matraquear monótono como a lançadeira do tear. Finalmente cá fora Odete enceta a marcha para casa, juntamente com a mole humana que desce a Alameda das Tílias, todas com farrapos de algodão preso aos cabelos e á roupa que lhes denunciam a condição. Todas têm ainda uma longa tarde pela frente, acelerando assim a marcha, pela estrada de paralelo irregular e escorregadio, atravessam a ponte, e cortam caminho por umas escadas íngremes que quase lhes tira a respiração. No fim das escadas têm ainda o resto da subida para encetar até desembocarem no largo da feira…o suor escorre-lhes em profusão pela testa, pelo colo dos seios dando ao decote um ar quase lúbrico não fossem as feições fechadas e esforçadas das mulheres que limam as arestas aos paralelos da estrada. Ao lado de Odete caminhava ofegante a Amélia, sempre divertida e bonacheirona nos bancos de escola, mas a vida tornou-a amarga e de mau trato. A vida, esta maldita vida…
Em frente ao largo da feira caminhavam pela berma da estrada rentes ao muro da fábrica de desperdícios, as duas conversando cada uma com seus botões que o caminho até casa ainda era longo. O carro surgiu do nada na curva apertada em frente á fábrica, perdeu a direcção, não consegue desfazer a curva, Odete estacou o olhar no carro num misto de terror e fascínio, secundada pela Amélia dois ou três metros atrás. Odete ouviu o estrondo do carro contra o muro, ainda conseguiu vislumbrar o esgar de dor da Amélia, mas só o som dos vidros e chapa estilhaçada se ouvia ainda. O mulherio acorreu em debandada ao local, fazendo roda em volta da Amélia. Odete ouvia os comentários – “morreu, ai minha nossa senhora…”, “ficou como um passarinho”, “o que vai ser dos filhinhos dela?”. Os comentários deram lugar ao pranto das carpideiras alto e sonante como convém nestes momentos… Odete chorou baixinho, deixando uma lágrima teimosa escorregar pelo rosto trigueiro. Não lamentava o azar da amiga, lamentava a sua sorte, ali ao pé, tão perto e foi na Amélia que o carro bateu. Era dia da Amélia morrer, e quando, mas quando seria o dia da Odete?
A Amélia morreu assim numa tarde de verão mas que podia ser de inverno.