Prosas Poéticas : 

Produção do tempo

 

Três horas, a cidade está envolta num nevoeiro pálido, o frio penetra-me os ossos, talvez uma chuva fina comece por cair enquanto deambulo sem destino por estas avenidas desertas. Ouço vozes ao longe, vozes humanas, frases desconexas, palavras soltas. Os bares e cafés vão estar abertos até ao começo da manhã. Por mim o que desejo é perder o sentido e a orientação, deixar-me embalar pelo silêncio da noite, deixar-me embalar por sons longínquos de quem atravessa a escuridão como vultos anónimos. Vejo pequenos grupos aparecerem e desaparecerem, risos que começam ao fundo de ruas mais iluminadas por tons feéricos que convidam a vida a gastar-se de um modo rápido e intenso. A noite é este contraste entre o ruído e o silêncio, entre a luz e a sombra, a presença e a ausência. E eu atravesso a noite, sem destino, pelo prazer, o límpido prazer de atravessar a noite, caminhar por ruas e avenidas, praças e jardins, sem procurar nada, sem vocação para nada, deambulando para olhar a noite que flui por dentro de si, inexorável, eterna.
Esta cidade é uma cidade possível, uma igual a todas as outras. É um lugar imenso, penso que é um lugar imenso, como todos os lugares imensos. Ideal para nunca a conhecermos, para nunca sermos conhecidos. Explico: aqui estamos condenados a ser anónimos, aqui todos os espaços são inóspitos, aqui todos somos incógnitos. Ainda que voltemos às mesmas ruas, aos mesmos parques, às pontes, aos túneis, aos viadutos, às vielas, às estações de metro, de autocarros, às lojas, aos centros comerciais, aos mesmos restaurantes e bares e cafés, e quartos, pensões, hotéis, sempre seremos estranhos, ou melhor, indistintos, ignorados, inexistentes. Nada nos marcará, fantasmas de nós próprios, andando em redor do desconhecido, do indefectivelmente desconhecido. Por exemplo: ontem estive ou não aqui, é possível, nada me pertence e não pertenço a nada. Talvez. Talvez até não exista. Nem sei se existo, repito: sou inexistente. Necessitamos dos outros, de lugares, de referências, de memórias, para podermos existir, para sermos, para sairmos do nada. Identidade, unidade. Pluralidade, multiplicidade. Necessidade e contingência. Ser por não sermos o outro. Ser para não sermos o nada. Falo para esta porta, para a porta deste edifício, um edifício entre outros edifícios um pouco esguios numa praça deserta, falo solitário, a qualquer hora da noite, não importa. Esta praça está, de momento ou sempre, deserta. Não importa. Quando todos voltarem pela manhã continuará deserta, não importa. Penso e rio-me, gosto de pensar e rir-me, não do que penso, mas de pensar. Rir aprofunda o pensar, rio-me até às lágrimas e o pensamento flui de um modo fácil. Talvez ainda haja um futuro para o riso! Somos demasiado sérios! Com os olhos fixos nas coisas, com as mãos tacteando as coisas, com todos os sentidos despertos pela luz coada na neblina, o ser é o vazio, semelhante a um vapor, uma espécie de fumo volatilizando-se silencioso pelos ares. Melhor, o ser é apenas um verbo copulativo, cumpridor de funções tão nobres como as funções lógicas e gramaticais. Sempre o soube, sem surpresas. Rio, continuo a rir, rio de tudo, rio de mim. O filósofo tinha razão. Acrescento: prefiro a coisa ao ser.
Ainda: a chuva é agora mais forte, vou apressar-me, tenho muitas outras ruas e praças e avenidas e edifícios para acompanhar numa viagem delirante ao âmago da noite, ao túnel da noite. Caminhar é pensar, pensar é caminhar. Penso, logo caminho. Caminho, logo penso.
Agora: ignoro tudo, suspendo as frases, os raciocínios. Digo o que me ocorre numa torrente imediata e, dos enunciados assim ditos, penso numa torrente imediata de conceitos, proposições, argumentos. Novas teorias para meditar enquanto serenamente caminho na ausência de um destino, repito, isto é, de um objectivo, de uma finalidade. Isto é, de um lugar, uma companhia, um grupo, uma actividade, uma profissão, vocação, desejo, crença, ideal. Não tenho intenções, não tenho motivações, não tenho vontade. Estou inocente. Teoria: pensar é caminhar, repito-me. Falo enquanto caminho e sei, sem equívocos, que indo pela noite dentro, sem equívocos, sem vontade de conversar com alguém, indo, me canso de um cansaço dormente que alivia, que reconforta, que desespera, atordoa. Quero parar, mas o cérebro não me perdoa, tudo flui, a vida flui, escorre pelo pensamento ou pela imaginação ou pelas veias ou pela garganta ou o coração e os pulmões e os órgãos inúmeros que há no corpo…
Estou inocente. Onde estou poderia não estar, o que faço poderia ser o que não faço, tudo é possível, o que sou é uma possibilidade entre todas as possibilidades. Não me lembro de ter escolhido, de ter optado, sinto-me agora como sempre alguém que é manipulado, orientado, conduzido por mãos invisíveis que decidem por mim. Peça de um jogo jogado que desconhece as regras, peça de um grande jogo onde a única certeza é que um jogo se joga. Um jogo se joga, um jogo eterno, um jogo se joga independentemente das peças, porque sempre haverá novas peças, outras peças que vêm substituir as gastas, as inoportunas, as velhas, as moribundas, as inúteis…E o jogo continuará, continuou, continua. E a liberdade é um sarilho, sobretudo porque a liberdade cria a ilusão da liberdade. Estamos condenados a não ser livres – o filósofo não tinha razão -, não escapamos, no limite da ilusão, à tirania de uma história sinistra que nos retira a autodeterminação, a alternativa, a escolha. Como dizia o poeta, talvez pelos mesmos motivos ou por motivos completamente diferentes: Raios partam a vida e quem lá anda! O absurdo!
Caminhando por estas ruas, insisto, não foi escolha minha. Foram as circunstâncias que para aqui me levaram. Nada do que possa julgar consequência de uma decisão pessoal foi, efectivamente, resultado da minha liberdade. Nada. Tudo foi circunstancial, tudo foi um simples acaso, um fluido e é tudo. Ou, o que me acontece, o que me pode acontecer, o que me acontecerá no futuro, breve ou longínquo, foi determinado por factores, por causas, por antecedentes, mas que ultrapassam a minha responsabilidade pela sua ocorrência. De um modo ou de outro, não tenho escolha. Ser em si ou ser para si? Não!? Talvez tenha escolhido, tenha optado, tenha valorizado, mas… De facto, decidi, uma noite – uma tarde, uma hora, esta noite -, voltar para a esquerda e não voltar para a direita, olhar para o céu e não para a terra, fumar um cigarro ou deixar de fumar, ladrar ou miar, amar ou odiar, mas…Talvez tenha…É possível que tenha comido carne ou comido peixe num dia longínquo, não me lembro, sem nada ou ninguém me obrigar a comer carne ou peixe, ou a comer ou não comer. Penso, onde nasci, quando nasci, de quem nasci, o tempo e o espaço que me moldaram, a cara que me deram, o corpo que tenho, o que sei e o que não sei, o que fiz e o que não fiz – deixem-me continuar -, aquilo em que acredito e aquilo em que não acredito ou já não acredito, as pessoas que amei, as pessoas que passaram por mim como íntimas e me são hoje indiferentes, as histórias que soube e esqueci… Mesmo se há factores que não domino, tal significará que tudo escapa ao meu controlo? Mesmo se muitos acontecimentos parecem ser, inexoravelmente, aleatórios, tal significará que nada escapa ao absurdo do acaso? Nada? Estou convencido, para além de tudo o que possa dizer, que a vida não é um projecto, um processo contínuo de escolha, em última ou primeira instância, nada se configura como autodeterminação, livre-arbítrio. Há uma lógica do aleatório? Há uma determinação no indeterminado, liberdade na causalidade?
Confesso, esta chuva molha-me e quase tenho a ilusão de que regresso a casa por vontade própria. Confesso: não, estou inocente! Mas, medito, reflicto…Podia pensar algo completamente diferente e reconhecer que sou livre, que estamos condenados à liberdade, só não somos livres de não o ser. Sartre teria toda a razão do mundo, a má disposição provocada pelo cansaço de uma noite vivida à chuva, ao frio, seria a causa de sentimentos mórbidos, insustentáveis, rícinos, seria a razão de não ter razão. Não, de facto somos quase em absoluto livres. Dizer o contrário é uma perfídia, uma afirmação perigosa de alguém que esconde uma intenção obscura. Tudo nos separa destas pedras, destas ervas daninhas, dos fenómenos quânticos, mesmo destes cães que passeiam inconscientes e são irresponsáveis pelos seus actos instintivos, espontâneos, naturais. Pelo menos tenho a liberdade de defender todas as teorias possíveis, entrar em contradições, ser incongruente, incoerente. Pelo menos posso apresentar as minhas teses, os meus argumentos, pensar os problemas e resolvê-los segundo as minhas conveniências ou não. Sou diferente de mim mesmo em cada noite que passa pela minha vida e que eu escolho para sentir as múltiplas hipóteses de pensar, de ser, de estar. Talvez um dia, por decisão própria e livre, seja egoísta, noutro altruísta, no mês seguinte um assassino, depois um ladrão, um violador, um miserável, uma pessoa solidária, um misericordioso, um crente fanático, um católico praticante, um católico não praticante, um budista, um céptico, um atraente agnóstico, um defensor da pena de morte, um intrépido adversário de todas as religiões, um místico, hedonista, antifascista, democrata, ateu, internacionalista, comunista, anarquista, protestante, taoista, capitalista, pedinte, banqueiro ou caixeiro, professor ou proxeneta, escritor ou traficante, vigarista, sapateiro, louco, polícia, jornalista, actor, poeta, pastor de almas ou animais, vendedor e trolha e emigrante e imigrante e mercenário e bispo e talhante e soldado e papa e presidente e condenado e enforcado e assassinado e mercenário e doente, talvez …(talvez nunca possa deixar de ser humano... Deixar de ser humano, a isso é que era urgente chegar - mas é tema para outra noite).
Confesso, confesso-me sem certezas, sem certezas, enquanto as horas passam e decido regressar pelo fim da madrugada ao quarto, regressar ao quarto arrendado, por um mês, nesta cidade cujo nome não importa, mas que é imensa e igual a todas as cidades imensas em que somos anónimos, nós, a cidade, eu, todos os outros, anónimos.
Os outros, os outros ao longe, os outros vagueando. Os outros, há sempre os outros, próximos ou longínquos, os outros existem, estão para ali, na distância existem e eu ouço-os, perdidos como eu, sem destino como eu. Apetece-me regressar ao lar, apetece-me caminhar, continuar, o caminho é caminhar. Apetece-me perder a orientação, perder-me, perder-me de mim, perder de mim, perder a autoconsciência, a consciência de si, explodir o eu, fragmentar-me, dividir-me, ir e não ir, parar e caminhar, viver e morrer, amar e odiar, estar e não estar, ser tudo, não ser nada, e tudo ao mesmo tempo…, ser o outro e o eu, ser um elemento dos outros que observo e ser eu observando um elemento dos outros que observa o eu que observa o outro…Biologicamente social e socialmente biológico. Sorrir à humanidade como a criança sorri, sorri logo nos primeiros meses, mas sorrir com escárnio para contemplar o grande espectáculo que é a humanidade moribunda. A humanidade, ah, a humanidade! Não temos importância absolutamente nenhuma. (Mas não temos importância relativamente a que critério? O que é preciso é abolir qualquer critério e deixar de pensar em qualquer importância que possamos ter ou não). Quanto ao psicanalista René Sptiz, o sorriso entre as seis e as doze semanas é um fenómeno comunicacional, o modo de o bebé estabelecer uma relação emocional e intencional com o que o rodeia e resultado da díade mãe/filho. E ele sorri mesmo? Que sorrisso é esse? A inocência. Ah, a humanidade!
Vou dormir - as grandes teorias moralistas são o resultado de uma noite de insónia ou de uma indigestão gástrica.


 
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CarlosFrazão
 
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