Poemas : 

Entre a terra quente e o mar vazante

 
Entre a terra e o céu, esgueira-se fausto
um rio oferto de búzio ocos.

Devassa-se a miragem, doce e virginal -
inocuamente privada - de um espaço aberto,
onde estrelícias de jardim disputam,
a pureza inicial do primordial movimento,
no bailar com esguias estrelas-do-mar.

Em danças tangentes de ventos e dilúvios,
no redondel d' inundas fogueiras
de fogo já carbonizado.

Entre a terra quente e o mar escorrente,
corre um deserto aberto a navegar-se…
Em línguas d’areia arenosa. Granulada.
Eleva-se em cilindros a atentar com a calma
marsupial das estrelas, perdidas na estrada do sol.

Entre a terra quente e o mar vazante,
em águas nunca acabadas, segredam-se lentas
madrugadas judias. Buscam-se em papoilas resolutas,
quando de lá da serra ventam águas redemoinhas
na fome de beijar desabrigadas bocas.

Nas horas loucas em que galinhas poedeiras
chocam horas de relógios envidraços.
Sem sentido…

Entre a terra e o céu, matilhas de cães vadios
abocanham marotos, atacadores de sapatos rotos…
No momento em que os lenhadores disseminam no corte
o sobro e em que as comadres se ungem a noite inteira,
em efusões de nupciais flores.De flor de laranjeiras.

No instante fatal em que o Sol estonteou no cio ali ao lado
no colo sazonado da sensual sementeira.

Entre o céu e a terra escorre-se como quem morre,
o peso irrequieto da demora – de dar ramo, ramificação,
de dar o corpo, a alma e até mão… de dar completo afecto.

Falha, toda a natureza se revolta. Acocorada,
agora, rente de si, desliza abocanhada. Chora!


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Autor
Mel de Carvalho
 
Texto
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1892
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Enviado por Tópico
Valdevinoxis
Publicado: 23/04/2007 23:16  Atualizado: 23/04/2007 23:16
Administrador
Usuário desde: 27/10/2006
Localidade: Aguiar, Viana do Alentejo
Mensagens: 2118
 Re: Entre a terra quente e o mar vazante
Palavras para quê? É a Mel que fala de amor sensual, do correr da maré que destapa e cobre a terra com o mar, num vai e vem, num vem e vai continuo e sem fim.

Muito lindo Mel. Muito bem tirada esta fotografia do movimento.

Valdevinoxis


Enviado por Tópico
Gilberto
Publicado: 23/04/2007 23:27  Atualizado: 23/04/2007 23:27
Colaborador
Usuário desde: 21/04/2007
Localidade: V.Nde GAIA-Porto
Mensagens: 1804
 Re: Entre a terra quente e o mar vazante
Belo momento de poesia!

Adorei este poema! Então a parte final...divinal!

"Entre o céu e a terra escorre-se como quem morre,
o peso irrequieto da demora – de dar ramo, ramificação,
de dar o corpo, a alma e até mão… de dar completo afecto."

Parabéns!

Beijinhos


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/04/2007 00:25  Atualizado: 24/04/2007 00:25
 Re: Entre a terra quente e o mar vazante p M de Carvalho
Uma poesia muito boa de se ler, com passagens marcantes, gostei. Lembrou-me um pouco Cesário Verde, poeta português do séc XIX. E também um misto de imagem de índole africanista, bem ao seu jeito de se expressar. Saudações, godi.

Enviado por Tópico
Carla Veiga Ribeiro
Publicado: 24/04/2007 00:33  Atualizado: 24/04/2007 00:33
Participativo
Usuário desde: 07/03/2007
Localidade: Sobreda da Caparica
Mensagens: 24
 Re: Entre a terra quente e o mar vazante
Mel...
Obrigada por este poema. É por isso que continuo a espreitar todos os dias este cantinho poetico. É um prazer ler tanto talento.
Bj