A Morte do Poeta
São três horas da tarde, o Sol escaldante brilha no céu, um calor infernal.
...
Na praça central da cidade algumas pessoas. Um dia tranqüilo e calmo em Mind. A maioria da população vive na boemia, trabalham quando dá na teia ou quando são obrigados a fazê-lo.
Um pequeno grupo se forma, o Marceneiro, o Serralheiro e o Guarda conversam: - Viram o Poeta hoje? - Pergunta o Marceneiro, que não sabia ainda dos boatos que já corria pela cidade. - O Poeta morreu! - Disse o Serralheiro como que admirando a desinformação do Marceneiro.
Na verdade ninguém sabe direito o que aconteceu, mas sabe-se por quase todas as bocas que o Poeta morreu.
É o começo do tumulto. Uns achavam que o Poeta havia morrido, outros diziam que havia viajado ou tinha simplesmente se trancado em casa.
O Guarda afirmou que o tinha visto há um mês, mas isto é muito tempo. Ele explicou ainda que quando viu o Poeta era de madrugada e ele andava pela Rua da Saudade no bairro da Esperança, parecia triste, pensativo. O cumprimentou, mas sem o entusiasmo de sempre.
...
O Poeta morreu! Morreu não, morreu? Morreu! Viajou! Está doente! Os tons das vozes iam aumentando quando o Jornaleiro chega e pergunta o motivo da reunião. Já é uma reunião, em Mind fazem-se reuniões na praça sempre que há emergências. Depois de indagar o motivo pediu a palavra, todos se voltaram para ele, ficou sem jeito, com um sorriso amarelo disse: eu vi o Poeta. Quando? Pergunta em coro a pequena multidão. - Foi..., não me lembro direito, mas foi na casa dele, acho que tem uns quinze dias. Nesse momento ele expressa tristeza e preocupação, o tom da sua voz se baixa e o burburinho começa novamente.
...
Quem viu ele morto? Ninguém viu! Mas não precisa ver! Alguém viu ele viajando? O bilheteiro da agencia de viagens disse que por lá ele não passara
...
Morreu mesmo! Morreu não! Está vivo por aí! Ele sempre some e depois aparece! Mas já faz muito tempo que ninguém o vê!
Chamaram o médico.
- Viu o Poeta?
- Vi. Responde ele prontamente.
- Quando?
Pergunta a inquieta turba.
- Deixe-me ver... A última vez que o vi foi quando ele consultou, foi...
- Quando!? Fala logo!...
- Faz tempo, uns três meses!
- Ah!!! Assim não dá!
O médico é um ancião, um dos mais velhos de Mind, usa barba, fala calmamente, é perito em resolver os pequenos problemas da população com seus chás e porções curativas. Conhecia bem o Poeta e sabia que ele não estava doente, mas não tinha a mínima idéia de onde ele estivesse. Voltou ao consultório para ver as últimas anotações feitas na fixa de acompanhamento do Poeta.
...
Em Mind é assim, todo mundo vive no mundo da lua. Ninguém sabe nada direito, principalmente quando envolve outras pessoas, mas tem uma coisa interessante em Mind, quando alguém precisa, todos se ajuntam para ajudar, não importa quem seja, toda a cidade se une para resolver problemas.
...
A reunião continuou na praça, e quanto mais pessoas se juntava, maior era o tumulto.
...
Mind é uma cidade pequena, porém nunca alguém se preocupou em contar seus habitantes, sabe-se, porém que não são poucos e a cada dia chegam novos habitantes. Essa população não é, como alguns pensam, seleta. Em Mind existem pessoas de todas as índoles e comportamentos. A diferença dessa cidade para todas as demais é que não existe diferença entre o juiz e o assassino, entre o ancião e a criança, entre a beata e a prostituta, entre o missionário e o traficante. Todos, sem exceção se respeitam, cada um se põe no seu lugar e desenvolve o papel que lhe é designado. Não existem prisões, penalidades. Todos os acontecimentos são tratados como fenômenos naturais e os “problemas” são revolvidos sem parcialidade ou favoritismo. Do menor ao maior, todos sabem dos deveres e dos direitos que lhe são designados ou atribuídos.
...
Morrer em Mind tem um significado singular, não existem cadáveres nem cemitérios, muito menos funerárias etc.
Mas antes de explicar a morte em Mind, deixem-me falar sobre o nascer.
Em Mind nascer é tornar-se visível assim ninguém chega em Mind velho, ao passar pelos portões de entrada o velho torna-se novo e é adotado por algum habitante sendo tratado com todas as regalias e cuidados necessários para o crescimento. Nenhuma criança lá vive nas ruas, todas são acolhidas e acima de tudo, são respeitadas, pois recebem dos adultos, todos os cuidados necessários para o desenvolvimento, desde conselhos e orientações à total liberdade de conhecer-se bem como conhecer outras pessoas. As relações entre os habitantes de Mind é prioridade, por isto, desde pequenos os mindianos aprendem que carinho é essencial e que o prazer pessoal é uma extensão do prazer coletivo.
Assim se nasce, assim se vive em Mind.
...
Se nascer é tornar-se visível, morrer é o inverso, tornar-se invisível, assim não há cadáveres, não há assassinatos, não há mortes por doenças ou outros males, a única forma de se morrer em Mind é tornar-se invisível, ou seja, deixar de se relacionar, isolar-se dos outros, desaparecer gradativamente. Quando isto começa a acontecer é o início da Morte. Ninguém morre da noite para o dia, a morte é um processo demorado e na maioria das vezes pode ser revertido. Apesar de ser um processo demorado, não é dolorido, pelo contrário, é uma das coisas mais agradáveis em Mind para quem se vai, mas para quem fica é sim desagradável pois cada habitante tem seu valor e é insubstituível.
Note-se, tornar-se invisível não é deixar de existir, a existência em Mind é eterna, logo morrer significa eternizar-se, cristalizar-se, não se vê mais, porém torna-se presente em tudo e em todos, daí ser agradável e prazeroso o morrer em Mind, pois esse é o único acontecimento no universo que permite a um único indivíduo estar presente em tudo e em todos ao mesmo tempo.
...
Voltemos ao Poeta.
...
Os registros do médico não ajudaram muito, o tumulto continuou e a cada momento mais pessoas se juntava na praça, todos com a intenção de ajudar a descobrir onde o Poeta se encontrava.
Chamaram o Professor, um homem concentrado, mas bastante extrovertido. Veio ele e algumas crianças, anda sempre assim, rodeado dos pequenos e curiosos mindianos.
Ao ser interrogado sobre o paradeiro do Poeta não soube dizer, tudo o que sabia era que há uma semana o Poeta havia se oferecido para ir à escola falar às crianças, depois disto nunca mais o vira.
No meio da conversa do Professor um dos seus alunos, o menor deles, levantou o bracinho pedindo para falar, ninguém o notou, continuaram conversando, cada um supondo algo, até que a criança disse:
- Eu vi o Poeta!
Alguém o ouviu.
- O que? Você viu o Poeta?
Todos se calaram e procuravam quem tinha dito que havia visto o Poeta.
Então o Professor, calmo e sereno como sempre, pegou o pequenino ao colo e lhe pediu que explicasse a todos onde e quando havia visto o Poeta.
Os pequenos mindianos são ávidos e atentos a tudo o que se passa e sempre estão alegres.
- Vi o Poeta amanhã!
Disse. Ainda confundia essas coisas do tempo.
- Deve ser ontem.
Disse o Professor que como ninguém conhece as crianças e serve sempre como interprete das idéias das mesmas.
- Eu estava brincando, continuou a criança, então ele passou e falou comigo, eu fiquei tão feliz, depois ele enfiou a mão no bolso e me deu isso. Disse repetindo o gesto do Poeta e tirando um pedaço de papel do bolso.
O Professor pegou o papel, cuidadosamente o abriu, era um bilhete pequeno, escrito à mão, a letra era mesmo a do Poeta, datava de três dias atrás. Todos ficaram apreensivos, até agora era o mais próximo que haviam chegado do Poeta desde que sentiram sua falta.
Então o Professor leu:
Queridos amigos,
Se estiverem lendo esse bilhete hoje é porque estão reunidos à minha procura. Fico feliz e agradecido por isto.
O motivo do meu desaparecimento vocês saberão quando me encontrarem.
Embora pareça absurdo para todos, mas eu saí da cidade.
Só conseguirei voltar se vocês me encontrarem e só poderão fazê-lo saindo também.
Não se preocupem. Saberão quando e como no momento certo
Um abraço a todos,
O Poeta
Além das palavras ninguém entendeu nada, nem mesmo o Professor que sabia muita coisa, de tudo ele conhecia um pouco, mas não conseguia entender porque o Poeta havia deixado aquele bilhete e nem essa história de “sair” da cidade.
Todos os habitantes de Mind vivem dentro dos termos da cidade. A maioria deles não tem conhecimento dos portões de saída, apenas sabem das entradas, mas existem outros dois de saída, porém poucos, quase ninguém conhece esses portões. Na verdade só quem já saiu sabe, mas até agora ninguém tem conhecimento de alguém que tenha saído e voltado.
...
Guardaram o bilhete e puseram-se a pensar: Quem poderia ter saído e voltado?
Fez silêncio na praça. A preocupação e a desesperança começavam a abater-se sobre Mind. O Poeta corria risco, agora sabiam onde ele estava, precisavam ajudá-lo, mas não sabiam como.
Ouviu-se ao longe o som de um violão e uma voz que cantarolava, era o Músico, vinha despreocupado e completamente alheio aos fatos de Mind.
- Por onde você andou?
- Bem, eu estava em casa fazendo música. O que houve? Quem Morreu?
- Até agora ninguém, mas se não acontecer um milagre alguém vai morrer!
- Quem?
- O Poeta! Ele está desaparecido há dias e você que se diz amicíssimo dele não está nem aí?
- Pois eu estou indo à casa dele para que me ajude com umas poesias!
Diz o músico se afastando em direção á cãs do Poeta.
- Ele está desaparecido leso!...
A despreocupação e tranqüilidade do Músico já estavam irritando todo mundo, só então ele entendeu que não adiantaria ir à casa do Poeta.
Mostraram-lhe o bilhete, ele leu e releu, em silêncio, ficou pasmo, desconcertado, conhecia uma saída, mas não era segura, e não tinha certeza se encontraria o Poeta lá fora.
A saída que conhecia era para um mundo estranho, barulhento às vezes e outras totalmente silencioso, mas denso, cheio de coisas e imagens. Não seria seguro e o Poeta com certeza não estaria lá.
Lembrou-se da outra saída, mas esta é apenas uma ponte que leva a outras cidades semelhantes à Mind e ele nunca havia atravessado-a e não sabia se o Poeta se interessaria ir para outra cidade, pois amava Mind.
Restava a entrada principal, quase ninguém sabe que pode-se sair por lá. Esta entrada está sempre superlotada de pessoas que entram. Poucos se arriscam a andar contra a multidão que vem.
...
Sair pela entrada principal é um desafio, ela sai direto na Terra do Sol, um mundo fantástico, extremamente iluminado, cheio de coisas lindas e maravilhosas, cheio de vida, de cores, pássaros e lindas paisagens. Para lá sim o Poeta iria, esse é o único lugar para onde fugiria.
Algumas vezes o Músico já havia chegado até o portão e visto de longe tais maravilhas, outras o Poeta havia lhe contado, mas nunca se arriscara sair. Mas ele sabia que o Poeta teria coragem para fazê-lo.
...
- Acorda Rapaz!
O Músico volta a si, assustado, havia ficado minutos absorto nas idéias e lembranças das saídas e voltas, das vezes que chegara à entrada principal junto com o Poeta.
...
Mas agora o Poeta fora e não voltara.
...
- Olha a melancia! Laranja! Banana!
A voz estrondeara pela praça, chegando o Agricultor o silêncio se rompe.
- Quem vai levar!? Moça bonita não paga pra olha!... Fazendo suas rimas e com um sorriso no rosto caminhava tranqüilamente com seu carrinho cheio de produtos frescos da lavoura.
- Ninguém vai querer nada hoje!
Gritou alguém.
- Estamos com problemas e você vem nessa gritaria!?
- Opa! Discurpa. O que tá contecendo?
- O Poeta desapareceu, talvez até já tenha morrido lá fora! Ninguém sabe por onde ele saiu e nem onde ele está agora!
- Pois eu vi ele ainda hoje, de manhã bem cedo quando eu saia de casa. Ele não tava com cara de quem está morreno e caminhava pros lados da Praia da Filicidade.
Já ia saindo com seu carrinho.
...
- Mas de que planeta você é? Onde você mora homem de Deus!? Nós não vemos o Poeta há dias!
- Ora ora! Eu to aqui todo os dia, mas ocês não me cunheci memo. Eu moro fora da cidade, venho e vorto todo dia, moro num lugar lindo que ocês nem imagina que ixesta.
- Ele deve estar pirado!
- Cala a boca! Temos que encontrar o Poeta!
- Ele disse que espera por vocês na praia.
...
- Pessoal, por mais absurdo que pareça nós temos que acreditar nele, disse o Músico. Acreditem! Vamos e vocês verão que é verdade!
Seguiram aquele homem, com medo, sem acreditar, mas foram.
Depois de passarem pelas várias paredes que formavam o labirinto chegaram ao portão principal. Era inacreditável o que viam. A luz ofuscava-lhes a visão, mas ao mesmo tempo os convidava a saírem. Pedindo licença, empurrando aqui e ali por causa daqueles que tentavam entrar, enfim conseguiram sair.
...
A visão era deslumbrante, o céu, as cores, o ar, tudo era muito lindo.
...
Demorou um pouco para se acostumarem com o novo ambiente, logo que o fizeram partiram em direção a tal Praia da Felicidade, que a maioria deles nem fazia idéia do que seria isto.
Não era longe, aliás, nesse mundo nada é distante.
...
A praia
...
Nunca tinham visto algo tão grandioso
...
O mar, tão imenso, tão lindo, as ondas, tão fortes.
...
Por um momento esqueceram o que foram fazer.
...
Os pássaros, as árvores, o Sol, o vento.
...
- Lá está ele!
Gritou alguém. Todos correram.
O Poeta lá, de pé, olhando para o horizonte, o Sol já baixo, estava em silêncio, não se voltou com os gritos que o chamava, parecia absorver a luz do Sol.
...
Todos pararam a uma distancia, não tiveram coragem de interromper, puseram-se a observá-lo. Parecia abatido, transfigurando-se.
Caiu de joelhos, ficaram apreensivos, sabiam o que estava acontecendo. Nunca haviam presenciado algo assim, mas sabiam que o Poeta estava morrendo. A cada minuto mais luz o envolvia. Não resistiu, lentamente deitou para traz, agora, com o corpo imóvel sobre a areia. De súbito a luz se foi, o processo fora interrompido, não se sabia o que estaria acontecendo.
O médico correu até ele, examinou-o, seu rosto ainda brilhava sorridente. Todos os outros se aproximaram.
- Ele precisa inspirar!
O médico começou a fazer massagem com alguns movimentos estranhos usando as mãos, tentava levantar sua cabeça, como que querendo que ele visse mais uma vez o Sol no horizonte.
- Inspira! Insistia o Médico já aflito.
- Respira! Respondia o grupo.
- Inspira!
- Respira!
- Inspira!
- Respira!
- Calem a boca!
Exasperou-se o Médico.
- Ele precisa é de Inspiração! É isso!
- Inspiração!?
Todos se assustaram. Há quanto tempo não a viam!? Que ralho andou acontecendo em Mind? Onde essa tal de Inspiração se metera?
- Olá! O que está acontecendo?
Pergunta uma voz meiga e não estranha.
- O Poeta! Ele está morrendo!
Responde alguém, indiferente à voz...
- O que? O Poeta não!
Põe-se de joelhos ao lado do Poeta, este a olha com movimentos lentos.
...
- Por onde andou minha querida?
- Fui visitar o Pintor!
- Ah Pensei tê-la perdido para sempre!
- Não, estou aqui, seja forte!
- Não poderei mais voltar. Ajude meus amigos
...
O Poeta fecha os olhos, seu corpo começa a brilhar novamente, o Médico testa os pulsos, estão normais, o Poeta sorri, diz adeus ao velho amigo. A luz torna-se ainda mais intensa, o corpo do Poeta começa a flutuar no ar, seu rosto ainda brilha e ele ainda sorri.
...
Agora pode ver a todos, eles, maravilhados com o que viam não paravam de observá-lo contristados, pois sabiam que estava indo para não mais voltar, não na mesma forma.
Não se podia ver o Poeta mais, apenas a luz forte e maravilhosa. De repente raios e mais raios como em uma queima de fogos de artifício atingiram cada habitante de Mind, desta vez sabiam de quem havia vindo aquela luz.
Após os raios não se viu mais o Poeta.
...
Conta-se que após esses acontecimentos o Músico consegue escrever as mais belas poesias, o Marceneiro criou vários móveis interessantes e úteis, o apito noturno do segurança ficou mais sonoro a agradável o Jornaleiro sempre trás boas notícias, o Professor injetou ânimo e criatividade em suas aulas, o Médico faz a todos os doentes e melancólicos esquecerem seus males e sorrirem de felicidade etc.
...
A inspiração nunca mais se ausentou de Mind. Todos os dias ao entardecer acontecem saraus de poesias e música na praça.
Os portões de Mind foram ampliados, o labirinto que obstruía a entrada principal foi demolido para que a luz do Sol ilumine toda a cidade todos os dias.
...
Irruuu!!!!!!!!!
Ecoa um grito agudo na floresta.
Uuuuu!! Responde de lá um mais grave.
É o Agricultor, hora do café da tarde, ele está na sombra. A senhora chega, serve-lhe o café, o bolo.
- Que Sol quente hem!
- É. Não dá para tocar direto. Tive que parar um pouco para refrescar as idéias.
Péricles