Entro na sala como um profeta no templo. Pé ante pé, passada curta e trémula calcando simétricos chãos que a alma desconhecia e a carne não queria lembrar.
A sala era pequena. Tão pequena que o palpitar do meu sangue não cabia dentro dela. Transbordava das janelas numa angústia unicamente minha. Nas paredes salpicadas de podridão, havia mosaicos sem cor, debutando as vestes de vermes insolúveis, inalados no escarro vermelho de qualquer boca maltratada pela dor. Os contornos eram o habitar promíscuo de húmidas negruras. O próprio ar circulava incaracteristicamente frio.
Em tudo o presságio vivo de um futuro flacidamente ruborizado. Ao meio da sala havia uma mesa, também pequena, frágil, numa correnteza de vozes circundantes, corolário dos anos. Vozes? Ruídos! As bocas abriam-se na tangente de um psiquismo que se quer libertar, contudo, interpenetravam-se e nascia a confusão. O barulho dos mais nervosos invadia o espaço do vizinho, sem esforço algum.
Sobre uma cadeira, um vaso murchava na uniformidade doentia em que os gestos se sentavam. As imagens que eu via no vácuo não tinham tonalidades, repetiam-se contínuas, sempre iguais. Cada vez mais igual às anteriores… a sala, as cadeiras, as vozes ocas e eu, tudo num ciclo que nascia em mim e em mim vinha morrer. Nitidamente, a sensação de não sentir algo que não angústia bravia ou medo.
Bruscamente, a voz gorda de uma mulher sem figura de gente atravessa o átrio da distância e fere-me o silêncio. Senti-a lúcida junto à língua do meu espanto. Olhei-a meio ausente. Sem timidez aparente assaltou-me numa pronúncia saloia. “Olhe lá, você não conhece o Xico do Moinho? O meu Xico” e continuou, “mas ele conhece-o de certezinha, ele conhece toda a gente, novos e velhos, até o presidente a câmara é amig…..”. Deixo de a ouvir, mas sei que continuava a falar-me das suas perspicácias e peripécias familiares e sociais. Volto ao silêncio étero, burburinhos de almas e razões sem razão alternam-se sucessivos.
De repente, a mudez do ar despertou-me a atenção. Abri os olhos com tanta suavidade e pausa que adormeci antes de os toldar na brancura do médico, surgido súbito pela ranhura de uma parede, quase parecida com a porta de uma casa vulgar. Para minha admiração, o médico surgiu de saias, com pernas devolutas e enormes mamas no peito, e um ar satânico escarrapachado no rosto, entre o sorriso escangalhado e a voz de malogro. Não sei se tremia, mas acho que sim porque o corpo e a mente, esses já há muito que não os sentia vivos. A meu lado, um homem velho olhou-me quase indiferente, quase preocupado e num quase sussurro tentou imolar-me o desassossego. “O médico hoje não pode vir mas mandou a mulher que não é tão boa mas desenrasca…”. Calo a boca e os ouvidos também. Chamam por mim mas não respondo de imediato, uma pausa útil para um último pensamento, “saio ou vou”. Chamam de novo. Respondi quase inaudível e rumei para a entrada, em fuga voraz e só parei no fim da rua, salvo pelo medo que me extravasa as dores nesse dente, que até já nem sinto doer assim tanto… Amanhã passo cá, outra vez, na esperança que a dor vença o pânico e tudo volte à normalidade… Afinal de contas é apenas um dente doente, velhacamente doente…