(MENÇÃO HONROSA NO 8º PRÊMIO MISSÕES DE ROQUE GONZALES-RS)
(Às pessoas simples, que vivem e sonham a PAZ, onde os motivos da violência são desconhecidos. Às vítimas das ideologias).
Depois da devastação, uma calma terrível tomou conta de tudo e de todos. Sem avisar, a guerra viera. E, sem avisar, as pessoas amadas foram pegas de surpresa, no bombardeio da morte.
Lenita olhava ao seu redor, do alto de seus 12 anos de idade, olhava para o pai, para a mãe e os dois irmãos, pedindo, mudamente, uma explicação para tudo aquilo.
O rugido dos tanques e das metralhadoras já estava muito longe, e a família de Lenita veio do outro lado do país, assim que souberam do ataque fratricida à fronteira, onde ficava o sítio das primas, dos tios e da vovó Zelda, que foram mortos por motivos totalmente alheios ao seu dia-a-dia, que era feito de trabalho e de sonhos pacíficos, mas jamais contando com a violência e com uma morte tão terrível.
Lenita ainda lembrava das cartinhas carinhosas que Maria Haidê lhe escrevera, contando sobre as pequenas alegrias do sítio. Olhando ao seu redor, parecia reler mentalmente as cartas da prima:
"- Querida prima Lenita. A vida aqui no sítio está muito calma, mas já sabe que a rotina daqui é bem diferente daquela rotina da cidade grande. Ontem, ainda, a vaca Mocha deu cria a uma linda terneirinha, que vamos chamar de Branca, porque ela é toda branca,com manchas pretas. Ela é linda!"...
Lenita olhou para ver onde estava localizado o estábulo, e só via ruínas. Imaginou, por alguns momentos, Maria Haidê brincando com a terneirinha de nome Branca, e não pôde impedir o ímpeto das lágrimas no seu rosto.
Viu que seus pais e seus irmãos andavam sem destino, olhando a destruição causada pelas bombas, sem saber para onde ir, o que fazer...
Assim que a guerra se acalmara, e souberam da morte das pessoas queridas, viajaram para aquilo que um dia foi um sítio feliz e agora era só um monte de pedras, escombros salpicados de sangue e desolação total.
Caminhou um pouco adiante, e encontrou os restos do piano da irmã de Maria Haidê, onde, como dizia a prima, Lícia tirava músicas maravilhosas, que encantavam a todos, espalhando alegria nos ares do sítio.
Novamente, seu pensamento voltou para a última carta de Maria Haidê, onde ela falava da irmã pianista, que tocava na igreja todos os domingos:
"- Lenita, agora quero lhe contar que a Lícia está aprendendo uma música muito bonita, chamada "A Voz do Coração", de Henri Van Gael. Eu amei esta música! Ela quer tocar no dia da formatura, no colégio, para oferecer às suas colegas de aula. Ela está tão feliz! Já sabe tocar uma vinte músicas, sem olhar para a partitura. Quando vocês vierem nos visitar, no final do ano, a Lícia quer fazer um pequeno concerto em família. Vocês vão gostar!"
A menina chegou perto daquilo que era o piano de Lícia, tocou na madeira com carinho, e pareceu-lhe ouvir as canções que a prima mais velha tocava quando todos se reuniam no sítio, nas festas de família.
Lenita sentou-se perto dos restos do piano, e olhou ao seu redor, mais uma vez, como para gravar na memória as imagens daquela dor insuportável de perder seres tão amados numa violência que parece não ter fim. Lembrou que a família de sua avó e dos seus tios, não tinha muitas posses, viviam do seu trabalho na agricultura, e jamais se envolviam em brigas de qualquer tipo. Todos os moradores da redondeza - que sofreram da mesma maneira - jamais sonharam com uma guerra, e a vida pacífica parecia já ser parte de um pequeno paraíso na terra.
Mas, o mundo de toda essa gente, de repente, virou um vendaval de ódio e de violência, onde a crueldade e a ambição de alguns conseguiram destruir a vida e os sonhos da grande maioria do povo, que nada sabia dos motivos que moviam aqueles bárbaros. Lenita lembrou tão fortemente da prima e das suas cartinhas falando da paz e das pequenas coisas que aconteciam em um sítio: a violência, mais uma vez, semeou seu campo de dor no coração das pessoas simples, apenas comprometidas com a rotina do dia-a-dia.
Olhou, desolada, ao seu redor, e parecia ver a prima correndo livremente por aqueles campos verdes: parecia ver, logo ali, seus tios, plantando e cuidando da terra, e, lá dentro da casa - que não existia mais - imaginou o som do piano de Lícia, sempre alegre a povoar os ares do pequeno sítio. Lembrou da vovó Zelda, cuja tarefa era de fazer a comida para o almoço da família, e parecia ouvir-lhe a voz, reclamando do reumatismo que a incomodava. As lágrimas rolaram, quentes e revoltadas, pela sua face adolescente. Procurou por seus pais, e pediu para irem embora, não sem antes visitarem o pequeno cemitério onde almas bondosas enterraram os corpos mutilados das inocentes vítimas daquela destruição.
Foi direto para o túmulo de Maria Haidê. Ajoelhou-se, e chorou largamente. Colocou delicadamente uma flor amarela no túmulo da prima, e, novamente, lembrou-se das suas palavras carinhosas e faceiras, nas cartas que lhe mandava religiosamente, todos os meses:
"- Lenita, papai e mamãe estão muito contentes, pois logo poderão comprar um trator novo, e melhoras as coisas, aqui no sítio. Eles trabalham bastante, e estão cansados. Por isso, eu fico contente, por eles, finalmente, poderem realizar esta compra. Lícia está ao piano, tocando aquela música que você gosta, lembra? Aquela que fala da saudade das pessoas que moram longe da gente.Sabia que tem um garoto que está querendo namorar a Lícia? Tomara que ela goste dele, também, estou louca para ter um cunhado! Eu tenho que terminar logo esta carta, porque quero colocá-la no correio, no caminho para o colégio. Vovó Zelda diz que está com saudade de vocês. Querida Lenita, não vejo a hora de chegar o final do ano, e abraçar vocês todos. Abrace, por mim, os primos, o tio Valdo e a tia Tê. Um beijo! Da tua querida prima Maria Haidê."
Repentinamente, o encanto de Maria Haidê parecia ter se transformado em horror, pois a última carta escrita trazia notícias tenebrosas, onde a prima contava sobre o clima de violência e de matança, que começou ao seu redor, por motivos que fariam Deus chorar:
"Lenita, querida: soubemos, pelo rádio e jornais, que a violência está tomando conta de Kosovo. Na escola, tudo está mudando muito rapidamente, não sabemos mais o que acontecerá no nosso país. Soubemos que estão matando muita gente, porém, ainda desconhecemos o motivo. Não se sabe por quê estão matando e morrendo, e eu confesso que tenho um medo terrível do que está por vir.A vida, aqui no interior, sempre foi muito calma e sossegada, hoje as pessoas estão com medo, e as notícias sobre mortes chegam muito rápido. Parece que estão dizimando o nosso povo. Creio que demoraremos muito, a nos ver novamente, por isso, peço que orem por nós. Um abraço. Amamos muito vocês! Tua querida prima Maria Haidê."
Esta fôra a última carta que Maria Haidê escrevera a sua prima Lenita, antes que a morte avançasse fronteira adentro de Kosovo, matando vidas de gente que sonhava com a paz, vivia em paz e fazia planos para o futuro, sem contar com aquela situação de caos total em que se envolveu a Iugoslávia, por causa da intolerância étnica e racial.
"Limpeza étnica!" Este foi o motivo que o mundo todo soube, que causou tanta morte e destruição! A história encheu novamente as páginas da vida de um povo pacífico, de sahgue inocente, e ninguém fez nada! As notícias do morticínio correram mundo afora, e ninguém fez nada!
As lágrimas não cessavam de rolar no rosto de Lenita. Nunca sua prima se referia à guerra e à violência a não ser nas últimas cartas enviadas. Suas primeiras cartas eram sempre alegres e afetuosas, falando das coisas simples, banais, mas que faziam a alegria de Maria Haidê. Apenas na sua última carta, Lenita percebeu um medo tão grande, pois mudanças começaram a ocorrer de uma hora para outra, na vida de todo o povo de Kosovo, principalmente naquela região, onde os conflitos se faziam com muita intensidade bélica. Longe dos noticiários e longe do mundo "civilizado", a prima não sabia que, enquanto ela sonhava com a paz, o mundo ao seu redor fazia a guerra.
"- Parece ser sempre assim", pensou Lenita. "Enquanto o povo trabalha pacificamente, como ovelhas de um aprisco sem dono, o ódio grassa entre os lobos, que aparecem somente para matar, destruir, e depois continuam vivendo da sua violência, enquanto os inocentes tombam, porque amaram muito a Paz, a tranqüilidade e o trabalho."
No longo caminho de volta para casa, Lenita sentiu-se como se tivesse morrido junto com Maria Haidê. Jurou que jamais voltaria a confiar na Humanidade, pois os inocentes, como ovelhas mansas e despojadas, acabam sempre trucidados pelos lobos, que não sabem viver sem o signo do ódio e da destruição.
Um vento frio bateu em seu rosto, e um arrepio de medo tomou conta do seu corpo e da sua mente. Já não tinha mais coração, para continuar amando a vida, depois do acontecido em Kosovo. Maria Haidê, seus tios, a vovó Zela e a prima, ficaram como símbolos de fogo daquelas pessoas que amam em Nome de um Deus sem ideologias, e não conseguem se defender das armadilhas de quem vive do ódio e para o ódio.
Lenita fechou os olhos, mas os pensamentos continuaram a bailar, sem perdão: "- O Amor parece não ter nenhuma força diante do ódio, quando este se determina a dominar a mente e os instintos humanos." Lenita tentou parar de chorar, mas as lágrimas, teimosas, caíam de seus olhos, de sua alma, enquanto o avião levantava vôo, levando-a de volta para o seu "porto seguro", onde as pessoas ainda sabem conviver sem se destruir. "- Mas, até quando? Até quando, os lobos deixarão as ovelhas apascentar a ternura, que Deus ordenou aos seus Filhos prediletos, sem verter o sangue da inocência, para atingir os seus objetivos cruéis? Até quando, a paz????"
SALETI HARTMANN
Cândido Godói-RS