Poemas : 

FORA-LHE DIAGNOTICADO CHUVA

 
FORA-LHE DIAGNOTICADO CHUVA
chovia dentro do seu corpo como típico novembro
folhas tristes: caranguejos em sobressaltos

frutos envenenados luziam em fogo posto nos cabelos
amores caiam-lhe aos cachos
e os ratos vinham por aí
construir seus reinos
seus rios que vão dar às omoplatas

o bruxo mandou o doente se retirar
suas unhas luziam como pérolas extraídas do sono
qualquer coisa fenomenal
sangue que não nega o corpo: música lírica derretendo aço

e o doente entristeceu-se
suas memórias vasculhadas a martelo
olhar de mocho a controlar os movimentos
do braço que fura o fogo
do peito que recebe fracas notícias por uma rameira

olha o tempo com imperfeição
uma gangrena escorre limpa e serena
sete bichos acampados no crânio esperam
a intermitência
há tanto a traduzir e ninguém é capaz

chove por dentro dele
sua carne ensopada ofusca o vitral
e quem se rir terá a sua chuva pela certa

devemos concluir o vector da existência
correr o fecho das galáxias para não mais
completar o século com os vulcões vazios
depois subir
com a calma de uma velhice
num suicídio
que demora a procriar

o que é o cérebro se não escuro
tinta que sobra das plantas comilonas

funerais só depois das nove da noite
que é quando o brilho assa e o morto comporta-se como morto
a demência não entra na tributação
nos cálculos da primavera
outono sim
é mês de cozer o pão entre as palmas das mãos
uma casa possessiva com ataques de nervos

e por que cai água nos regos cerebrais
O louco nada pelo ar em movimento de gibóia
Lento
Comprometedor
Como quem afasta o lodaçal com as arestas dos braços
Afiadas
Bilhantes como tudo que ilumina a gota


Chamam-lhe palhaço
Sorriso de alicate
Infiltra-se a chuva por dentro de alguém
Amamenta a loucura com sémen da sua paz
E dobra-se
Desta vez não espera pelos deuses à saida da taberna

Fecha-se em guarda-chuva – na sua verdade
Reparando feridas com o maçarico dos sonhos –
Intermitência - mas hoje ele não vai ganhar.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 16/11/2008 21:59  Atualizado: 16/11/2008 21:59
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: FORA-LHE DIAGNOTICADO CHUVA
Gostei, sabes que gosto muito de te ler...

"Funerais só depois das nove da noite" concordo, afinal à noite todos os gatos são pardos, nem se vêm os choros....

beijinho


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/11/2008 22:18  Atualizado: 16/11/2008 22:19
 Re: FORA-LHE DIAGNOTICADO CHUVA
Bem preciso de um médico que me faça o dignóstico: creio que no meu caso em vez de chuva é um dilúvio, e o funeral lá terá de ser depois da meia-noite. E as intermitências até podem ser da morte, parafraseando José Saramago, que por sinal faz hoje anos.

Belo texto,

Domingos da Mota


Enviado por Tópico
MariaSousa
Publicado: 16/11/2008 22:25  Atualizado: 16/11/2008 22:25
Membro de honra
Usuário desde: 03/03/2007
Localidade: Lisboa
Mensagens: 4047
 Re: FORA-LHE DIAGNOTICADO CHUVA
O imaginário esconde tristes realidades da vida. Uma escrita bela e "louca".

Gostei muito!

Bjs


Enviado por Tópico
António MR Martins
Publicado: 16/11/2008 22:29  Atualizado: 16/11/2008 22:29
Colaborador
Usuário desde: 22/09/2008
Localidade: Ansião
Mensagens: 5058
 Re: FORA-LHE DIAGNOTICADO CHUVA
Refinadamente prognosticado, circunstanciado pelo chuveirinho que se fez ecludir no seu interior corpo, sucessivamente fustigado de bicheza de baixa índole. O tributo: - O seu funeral.
Fabuloso o seu poema. Mas você é um escritor...é um poeta e está muito acima, artisticamente falando.
Meus sinceros parabéns.
Um abraço


Enviado por Tópico
Paulolx
Publicado: 22/12/2008 09:46  Atualizado: 22/12/2008 09:46
Da casa!
Usuário desde: 29/10/2007
Localidade: Norwich, Inglaterra
Mensagens: 235
 Re: FORA-LHE DIAGNOTICADO CHUVA
Surreal!
Li o poema 3 vezes e em cada vez encontrei um valor/significado novo nas palavras.
Isto sim é poesia!
Obrigado Flávio por escreveres com o teu mundo na mão não ligando ao que não te diz respeito.
Abraços