Há zonas de sombra nesta paz
Pesadelos que assaltam a luz de rompante.
Culpas, castigos, temores
Tão mais terríveis e monstruosos
Quanto maior é a paralela sensação crescente de felicidade.
Há sonos profundos de bem-estar, que sonhos violentos tentam despertar.
Como se tudo fosse uma infâmia, um atrevimento, uma blasfémia.
Um desafiar da ordem, dos deuses, da lei, da vida.
Às vezes a inocência protege-nos. A pureza concede-nos dons.
Outras vezes, transforma-nos em vítimas, fracas presas fáceis. Fatalmente devoradas.
Quase sempre damos as mãos: viajamos frágeis no mesmo pequeno barco e sentimos-nos a olhar na mesma direcção. Outras vezes porém, o teu dedo acusador repousa sobre os meus olhos. O teu sofrimento toma forma de desesperos. A culpa assoma-me. A dor tortura-te. O barco balança, os monstros riem-se da nossa desgraça. Nessas alturas questionamos tudo, olhamos para os lados, medimos as hipóteses de fuga. Percebemos que embora dolorosos, há outros caminhos.
Mas não os seguimos. Seguimos em frente. Tu com o teu olhar sobre a paisagem, eu com o meu. O que vamos vendo não é exactamente o mesmo, o que nos causa, às vezes, necessidade de clarificação. Tendemos a pensar que os outros vêem tudo através dos nossos próprios olhos… pressuposto lógico e estúpido baseado numa espécie de “ilusão óptica” da mente. Exercitamos então a nossa empatia, que chega, fácil, através da nossa especialíssima comunicação. Entendemos-nos, profundamente. Ficamos com as nossas diferenças, que no fundo nos fascinam e nos motivam. E com as nossas ânsias acalmadas pelo derramar desta magia, deixamos-nos ir mais um pouco, pelo rio calmo, mesmo que às vezes um pouco à deriva, sem que nos sintamos necessariamente perdidos. Sabendo que existirão provavelmente mais à frente neste rio, outros rápidos desafiadores, poços de água escondidos e cascatas súbitas. Eu invariavelmente mais calma e pronta para a luta, tu invariavelmente mais ansioso e inconformado, mais inflamado pelas emoções, mais afectado pelas contingências do presente e do futuro. Tu fascinado e a querer sempre mais para ter tudo, sofres mais do que eu com a evidência das margens do rio e dos seus perigos. Eu a quem a vida ensinou já a apreciar o que se me oferece, resisto à tentação da ambição e regozijo-me com o caminho, agradecendo talvez aos deuses o privilégio que me ofereceram. Tu, simultaneamente, lutas com os teus demónios, vês em mim os muros que eles próprios constituem. Dizes que é legítimo, que é natural., e que por isso é aceitável. Viajas com eles. Eles mudam de forma. Tentas transforma-los em anjos benfazejos. Tentas convencer-me a dizer que tudo é possível. Sim, tudo é possível, confirmo-te eu. Tudo é possível. Não sei no entanto se te apercebes da essência da luta que te dispões a travar. De que a fé na validade dos objectivos, não é elemento suficiente para a vitória. De que a vitória pode não ser o que acreditas que ela é. E até de que a luta nem sempre é o caminho que nos leva à vitória. A luta vejo-a eu como necessária e pertinente noutras situações. Mais como defesa, de que como ataque ou motor de qualquer ambição. Eu não sou uma conquistadora à procura de um império. Reúno mais as minhas forças em preservar o que a vida me dá. Faço o possível para ser merecedora dessas oferendas. Agradeço intimamente e tento compreender os senãos, com humildade. Há lutas, meu amor, que são desgaste de energias mal direccionadas. Mas enquanto houver fé e esperança continuarás envolvido nelas. Sem perceber que não depende de ti, e não depende de mim. Às vezes tentas dizer-me que a minha falta de fé é que é a verdadeira causadora desse resultado. Esqueces-te que eu não me pauto pelas expectativas do futuro. Isso não me condiciona. O que me condiciona é o presente e eu sei que ele é mutável. Apreendo constantemente os seus dados e adapto-me aos seus ditames. Mudo, mas não movida pelas vontades dos outros, ou as suas necessidades, ou mesmo pelas minhas. Não em função dos meus sonhos ou da minha fé. Não, porque desbravo caminhos à força, consciente do meu poder. Há coisas que não controlamos. (E quando eu digo isto, tu lês: “…e eu não sei? por isso é que eu reajo assim na tua presença…!” Certo, eu entendo e não te condeno, por isso mesmo, embora exijo que me respeites). Mas não é a minha falta de fé que me impede de sentir seja o que for. Quantas vezes já me aconteceu precisamente o contrário. Me surpreendi. Tive de aceitar. E quando assim é aceito, sem grandes lutas. Abro-me à vida. Mesmo que não me dê jeito nenhum. Mesmo que não fossem essas as minhas expectativas. Mesmo que isso vá contra as minhas previsões mais realistas. Eu não faço questão de ter razão. Não fico presa a esses condicionalismos. Não deves temer por aí. Mas por favor, entende: deverias guardar as tuas forças e as tuas energias para lutas efectivamente necessárias e deixar a vida envolver-nos; deixa o tempo passar e o rio correr, aceita as coisas tal como elas se nos apresentam, a cada momento. Nisto consiste o verdadeiro desafio que te propuseste aceitar. Não haverá certamente dois momentos exactamente iguais, mesmo que tu não faças nada para que assim seja. E mesmo que isso acontecesse, se entrássemos numa espécie de círculo vicioso ao qual nos sentíssemos presos, então teríamos ainda tempo para mudar os rumos das nossas vidas, pelo menos naquilo que podemos efectivamente mudar. Ambos sabemos que temos a cada minuto a liberdade de dizer a nós próprios e ao outro que não sabemos, ou queremos, ou podemos, lidar com isto. E hoje já ambos sabemos que não devemos dar o nosso tempo como perdido, seja qual for o desfecho desta nossa história. Entretanto, tenta manter o equilíbrio, e não balances demasiado o barco.
P.S.: Não sei porque escrevi tudo isto, se já to disse. Estou, parece-me, obcecada pela clarificação. Como se esperasse que, a qualquer momento, no percurso deste exercício, me surgisse outra qualquer luz sobre o assunto ou se me evidenciassem tonalidades que eu ainda não consigo percepcionar. Como se esperasse que a criatividade me assalte, ao longo do processo de escrita, como acontece às vezes quando escrevo um poema e ele acaba por me surpreender. Eu, ao contrário do que às vezes pensas, a única certeza que tenho é que não tenho certezas ou dados definitivos e por isso não paro de os procurar, à medida que me vou movendo, empurrada pela correnteza mais forte da minha alma.
Por me teres vindo a acompanhar, também a ti te agradeço e peço perdão pela dor que a minha existência te possa causar.
E por isso, embora não só, te beijo.
cruz mendes