Poemas : 

para os meus críticos

 
escreveu o último parágrafro e logo tombou
como retalho de um retalho
átomo separado em chão vazio
ou então: orquestra espalhada pelo chão

o romancista exerceu a força bruta de pensar
lançou um cosmo e perdeu-lhe o rasto
a ponta da linha para afiar as horas umas nas outras
agora sofre
como o vinho parado
adquirindo a cor do céu da boca de um pássaro malvado
inflamando os dedos no teclado morto
auto-inflamando melhor dizer

rato que não tem por aonde sair
acaba por falecer de dor
cântaro que não sonha perde a asa
a morte é uma imagem que cega

escreve
escreve e soma desamores em cada linha
risca e
desarisca
dá um grito e chama pela mãe gorda
pede a guloseima numa bandeja fria
o texto pede que se mate
que se viole
o romancista treme
seus molares aparafusam-se letalmente
experimenta a violência em demonstração do Demo
as personagens ficam mal calculadas
carunchosas
ao terror das bússolas
sem identidade molecular

trocam-se os corações mantêm-se as cabeças


de capítulo em capítulo vai ressuscitando o peito
estala a castanha no fogo do pensamento
e o seu sorriso é de limar arestas

o escritor é vago quando sofre?

a cada dia quinze páginas condensa o beco
rameiras de sexos nas mãos como pedintes
resolve por ironia castrar o sol por falta de milagre
torna-se convexo passional
gelado na nuca
terrífico nas pontas dos dedos
alma muscular sem antídoto para nada
tela mal projectada na íris
ideias lamacentas para laboratório

falhou-lhe o pátio
o degrau que subia
rosas empinadas
pequenas castrações no sangue

vai esmorecendo em cada sílaba
cinzas de tabaco habitam nos poros
o romance perde-se no bosque que inventou
o sangue circula como vara
às duas da manhã entra a ópera nos ouvidos
ouves?

os animais amam-se selváticamente
sem palavras de poesia
no edredon da corte
a resina do mau odor ataca
o romancista sua o ópio que não opiou
está prestes a terminar o livro
as fendas são carneiros ao ataque
a palavra Fim demora-se
como eu quando tomei como amor uma rosa branca
o homem rói a contra-capa
estupidifica-se a olhá-la
chora porque não há virtude em ser homem
o barro mal se segura nas magníficas entranhas da solidão

devemos não ter deveres
a criação é um coito
se escreveres luz terás o sol
se escreveres morte terás abutres sobrevoando
ejaculando
sobre as palavras:
chão.
esterco.
dogma.
futuro.
o que dói é o pântano a subir pescoço acima
não sei de que ano é o mar
nem importa se o vento levanta a saia à desventura
entre o verso e a dor morre uma andorinha

o escritor advém da sua invenção
é um elemento apavorado
a levitação é só depois do primeiro sono
conduz as palavras com chicote
quer um fim desejado
à base tiros
sem inquéritos
com interrogações a doer os ossos
pensa numa palavra feliz
olha o sol encorpado pela primeira vez
as horas são burlas
o momento é de gravitação nos ovários da nascente
o sangue ultrapassou os pinheiros altos
tornou-se seco
tão seco como o louco que se emborracha
é hora de dormir
trincar a língua pagã
os seios da madrugada ao rubro
que linda é a noite quando se levanta o tampo!
o seu sexo brilha: diamante original
apetece fornicar até a mais pequena cigarra

o escritor bebe e mija ao relento contra o tempo
é hora de dormir no iodo da loucura
era preciso falar sobre os homens
na masterização do poente
salvou-se
na cega luz do poema-mãe
desenhou um Xis no peito com uma navalha
 
Autor
flavio silver
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/11/2008 17:42  Atualizado: 11/11/2008 17:42
 Re: para os meus críticos
Antes que a tontura me tomasse, cheguei salva ao final do poema e só posso concluir:
O senhor é um sábio!
"a criação é um coito"
Eis um dos versos que comprova o que digo.
E foi diante, justamente, de uma sabedoria tão consolidada que encontrei em alguns colaboradores, diante de uma atitude de valorização da escrita, deixando à margem o que venha a fomentar conflitos improdutivos e destilação de venenos, diante dessa grandeza humana, eu, me sentindo bastante intimidada, tomei a iniciativa de deixar o sítio.

A sabedoria intimida os mais fracos, confesso.
Acho que fiz bem, fiz bem sim. Se tudo ainda não tinha sido dito, foi agora, nesse belo poema.
admiração,
Fabiana



Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 11/11/2008 17:42  Atualizado: 11/11/2008 17:42
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 2088
 Re: para os meus críticos
a ti que te critico, obrigado.
um grito extenso, sem pruridos, quase que cheira...

Esta é uma das razões do meu vício...

Abraço.


Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 11/11/2008 17:56  Atualizado: 11/11/2008 17:56
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8110
 Re: para os meus críticos
Vi alguns poetas nús, eu atrás da porta..Fantástico! Abraço.

Enviado por Tópico
Tânia Mara Camargo
Publicado: 11/11/2008 18:29  Atualizado: 11/11/2008 18:29
Colaborador
Usuário desde: 11/09/2007
Localidade:
Mensagens: 4246
 Re: para os meus críticos
Admiro-te Flávio e sinto que o que faltou
quando do meu problema aqui no site, foi
uma voz masculina para me ajudar, pois fui
ofendida moralmente, faltou um homem que tivesse
pulso para cessar aquilo tudo, o que fizeste
a pouco noutro poema é dgno de respeito.
Eu sinceramente me desencantei com o site, pq
jamais havia imaginado que um sítio onde se cultua
a beleza, o lirismo, pudesse me trazer tanta decepção. Beijos



Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 11/11/2008 22:47  Atualizado: 11/11/2008 22:47
 Re: para os meus críticos
Caro,
Tu és um sábio, um filósofo-poeta ou vise-versa.Tua escrita é profunda demais para eu alcançá-la, mas o pouco que absorvi muito apreciei.

Bjins, Betha.