Poemas : 

Agrafara-lhe os olhos de gleba...

 
Agrafara-lhe os olhos de gleba,
de cílios negros, profundos, pestanudos,
a uns outros, na cor incerta
de melenas a desfraldar em milhões de poemas.
(Já nada via a não ser, o transparente escorrer
da espuma incolor da matinal maresia).

Agrafara-lhe os olhos de feudo,
em poesia dançante das fragatas em alucinação.
No Tejo a emparelhar, em busca d'algum lugar,
rebuscando a incerteza confessa de um seguro pontão.

Agrafara-lhe os olhos na vassalagem,
num esvoaçar d’ asas abertas, azeviche selvagem,
negras andorinhas, escravas virgens meninas,
de um olhar de fundo de mar.

Eclipsara-se, clandestino,
na boca esboçada do riso, do estaleiro ali ao lado.
Num aramado sorriso, um sorriso não desabrochado,
dum traçado impreciso. Grilheta por se domar.

Decalcara-lhe a carvão, na fuligem da soldagem,
em atávica miragem, de ser lava de um vulcão,
um anagrama, uma indecifração.

Ataviara-lhe a alma
na alucinação confessa de que a levaria,
moira encantada, princesa,
num voo pairado de dorso. Para além do alaranjado
do regresso do sol-posto.
Num cacilheiro sem fundo, provindo de outro mundo.
Ancorado em nenhum lado, a escorrer-se p’ra foz…
Um cacilheiro divergente, no reverso d’ignota margem.
(Que ela, ela tinha alma de albatroz ou gaivota).

Numa viagem
sem tempo,
sem rota,
sem destino
que o não o de dar cumprimento ao destino …

Sobrevoar como quem voa,
a cidade, a sua cidade Lisboa.
De a levar a ouvir o fado, cantado dentro do peito,
do peito da Madragoa.
De a levar a ver o Mar…
O mar que a queria abraçar, num abraço liquefeito,
num abraço compulsivo, num estrangular corrosivo
e, lá no Bugio, beijar a boca da sua amada – a cidade encantada.

No dilúvio do desejo,
quis possui-la ali mesmo, engoli-la na saliva acre do beijo.
Quis fazer dela aguarela,
quis trancá-la em cimeiro Castelo.
(Apenas por mero zelo …)
A ela, mulher indefesa, Gata Borralheira, Cinderela …
Princesa …
A ela? Que despropósito!...
Esqueceu-se que era ela, a própria a fortaleza…

Agrafara-lhe os olhos de gleba …fizera dela a sua serva.
Hoje ela nem chora … Está de si, cega!!!






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Autor
Mel de Carvalho
 
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Enviado por Tópico
Carla Costeira
Publicado: 20/04/2007 22:22  Atualizado: 20/04/2007 22:22
Colaborador
Usuário desde: 16/02/2007
Localidade: Sintra
Mensagens: 918
 Re: Agrafara-lhe os olhos de gleba...
LINDO o que escreves!
Tens alma de poeta e requinte de escritora!
Bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 20/04/2007 22:27  Atualizado: 20/04/2007 22:27
 Re: Agrafara-lhe os olhos de gleba...
mel, este poema é uma alucinante viagem pelos cistalinos campos da miragem...
Ausência de filtro solar no espectro das cores, cegantes do sonho.
Em castelos - fortalezas, vivem muitas vezes princesas de areia e nós, cegos não as vemos...
Agrafem-me os olhos mas digam-me poemas de Mel, como este do qual já sou servo...


Enviado por Tópico
MariaSousa
Publicado: 21/04/2007 10:05  Atualizado: 21/04/2007 10:05
Membro de honra
Usuário desde: 03/03/2007
Localidade: Lisboa
Mensagens: 4047
 Re: Agrafara-lhe os olhos de gleba...
Magnífico, Mel! Descreves os locais duma forma linda e cheia de poesia. Voar sobre a minha cidade encantada foi o que fiz ao ler este poema.

Bjs


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/04/2007 16:00  Atualizado: 21/04/2007 16:00
 Re: Agrafara-lhe os olhos de gleba...
Maravilha-me a maneira
Como as palavras tu usas...
Transpõe-lhes as barreiras
E faze-lhes reclusas.

Parabéns é muito áfono
Pra dizer ao teu talento,
Pareces despida do átono,
Escreves com sentimento.