Meu nada:
Não sei de ti. Tantas décadas passaram...
Releio hoje uma carta escrita pelo teu punho, mas que me não era dirigida. Escreveste-a à minha irmã e eu roubei-lha. Sim, não tenho vergonha de o assumir. Roubei-a, roubá-la-ia de novo. Escondi-a durante muitos anos debaixo das tábuas do chão dum quarto partilhado com outrem que me deram por marido. Quando mudei para uma casa alcatifada, descolei um canto da alcatifa e mudei para lá também o seu sepulcro. Mais uma vez as tuas palavras fizeram companhia sienciosa à dor. Sempre me acompanhaste. Agora saiste do teu escoderijo e repousas, amarelecida, desbotada e picada pelo bicho da madeira na minha arca de tesouros. Sem chave nem cadeados!
Nas tuas letras quase desaparecidas, leio a exposição das tuas razões, as pressões a que te submteram, os tiros na noite. E pensara eu que apenas sobre mim tinham caído sonoras bofetadas, tiranias e controle desarvorado.
Lembras-te de me teres tentado falar à porta da Escola onde eu estudava? Não sei bem o que aconteceu, mas fui informada que lá tinhas estado. Eu fiquei ali dentro guardada. O meu pai tinha avisado o Director.
Até apanhar esta carta, eu apenas conjecturei o acontecido...
E como pudeste acreditar naquela carta que me obrigaram a escrever-te, sim, aquela em que a minha letra diferente do usual era a única forma de te gritar que aquilo não era meu?! Tu conhecias tão bem a minha letra... A tua resposta enviada para uma posta restante era cruel. Rasguei-a e alguém ta devolveu.
Já reparaste no poder das cartas? Nem tu adivinhas o que elas foram na minha vida. Mas eu prometo contar-te...