A ARCA DE BELZEBÚ
Jorge Linhaça
Havia num tempo que nem me lembro,
num lugar que já esqueci,
lá pelo mês de novembro
(ou será que era abril?)
numa aldeia esquecida,
lá pras bandas do calipal,
uma choupana em ruínas,
por conta de um vendaval.
Nessa choupana havia,
segundo o povo contava,
uma arca vazia ,
que, se enchiam, se esvaziava.
Não foram de uma nem duas,
as vezes que o povo falava,
que quando cheia estava a lua,
por ali ninguém passava.
Ninguém mais sabia ao certo,
de quem havia sido a choupana,
uns diziam que era do Anacleto,
outros da comadre Joana.
O certo é que a tal arca,
feita de pau de umbu,
tinha na tampa uma marca
feita pelo Belzebu.
Um pentagrama invertido,
feito com um ferro quente,
e dentro um chifre comprido,
donde saia uma serpente.
A arca não se arredava,
parecia grudada no chão,
e o que ali se colocava,
sumia na escuridão.
Como sou mui curioso,
resolvi investigar,
me chamaram corajoso
por a arca enfrentar.
Não sei se era coragem,
só sei que peguei meu cavalo,
e comecei a viagem
pela estrada de São Gonçalo.
Cheguei lá bem já à noitinha,
levei meia dúzia de trecos,
rezei uma ave Maria
enchi a arca de cacarecos.
O lugar era medonho,
cercado de escuridão,
valia-me Santo Antonio
e o meu fiel lampião.
Não era desses de gás,
era antigo de querosene,
quem viveu tempos atrás,
por certo que me entende.
Num canto daquela choupana,
coloquei o lampião
fiz o meu poncho de cama
e deitei-me ali no chão.
Lá fora, a noite pampiana,
coberta de cerração,
zumbia qual lichiguana
pelas frinchas do galpão.
Confesso que senti,
o sangue gelar nas veias,
por pouco que não corri
quando vi a lua cheia.
Não sei se foi desatino,
mas me parecia real,
ver a forma de um menino,
saindo do pinheiral,
Não fosse meu pingo brasino,
e o meu sangue bagual,
não desafiava o destino,
nessa aventura mortal.
Levei a mão para traz,
procurando na guaiaca,
o cabo da minha faca
pra enfrentar o Satanás.
O tal menino charrua,
veio em minha direção,
atrás dele a índia seminua,
com ares de assombração,
podiam ser sombras da lua,
no meio da viração,
quase que corro pra rua
e afroxo o garrão.
Fiquei ali acrocado,
espiando ressabiado,
eles vindo pro meu lado,
meu destino já traçado.
Lá na mata, o urutau,
gritava igual um vivente,
com seus cantos infernais,
gelando a alma da gente.
Pela porta da choupana,
entram a índia e o menino,
lá fora os ruídos da sanga
mexendo inda mais comigo.
Foram direto pra arca,
a índia cheia de zelo,
nas minhas mãos duas facas,
preparadas pro entrevero.
Tiraram do velho baú,
a comida e os trastes,
eu beijava minha cruz
esperando pelo embate.
Depois de observar,
e já refeito do susto,
resolvi me arriscar,
valente igual um cusco.
Aproveitando a olada,
não me fiz de rogado,
chamei a china ,que, assustada,
quase que cai para o lado.
Foi aí que percebi,
que os dois eram viventes,
e o que achavam ali,
tomavam como presentes.
Moravam nas cercanias,
ela mui bela e viúva,
viviam os dois a la cria,
com dias de sol e de chuva.
Acendi uma fogueira,
ali mesmo na choupana,
a china toda faceira,
disse chamar-se Joana.
Era tão bela, a prenda,
e tão alarife, o gur
que ao invés de contenda,
confesso que não resisti,
levei-os pra minha hacienda ,
com ela casei e vivi.
Glossário:
Lichiguana : tipo de abelha ou marimbondo
Frinchas : frestas
Pingo: cavalo
Brasino: cor de fogo, acobreado
Bagual: Bravio, corajoso,indômito
Charrua : antiga tribo indígena dos pampas
Afroxar garrão: acovardar-se, fugir, correr, amedrontar-se.
Acrocado: de cócoras, agachado.
Urutau: Ave noturna das matas rio-grandenses cujo canto lembra vozes de pessoas a gritar de longe
Viração: cerração
Vivente: pessoa, ser vivo, criatura
Sanga: pequeno curso de água menor que um regato ou arroio.
Entrevero: Luta corpo a corpo até a morte.
Cusco: cachorro pequeno, vira-lata.
Olada: ocasião propícia, oportunidade.
A la cria: Ao Deus dará, pela providência divina.
China: mulher índia ou com traços indígenas, esposa, prenda
Prenda: esposa, namorada, moça gaúcha