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estacionou o carro à porta do 47, saiu com o passo travado pela saia que lhe dava pelo joelho, sorriu um pouco quando o casaco ficou preso na porta do carro. estavas sentado, tu, à porta do jardim com as mãos presas entre as heras da cerca e não deste conta do seu regresso. estavas com os olhos presos no que ela fora, mulher, mãe, senhora, para sempre. não quiseste ouvir o barulho das rodas do carro contra o asfalto, cada vez mais perto, cada vez mais dorido. tu não a amas. entrou em casa apressada, queria ver-te, correr para ti como sempre tinha sonhado, no bolso do casaco algumas fotos de um casal feliz que há muito tinha morrido. tu empurravas agora o baloiço com o corpo, alguns patos adormecidos no lago levantavam-se e vinham ao teu encontro, em fila indiana, talvez esperassem um abraço ou algumas migalhas de pão. tu nem sequer a olhaste quando ela entrou no jardim e a voz se abriu num abraço que não querias. envolveu-te com os braços postos num desassossego continental, segredou-te alguns nuncas e muitos sempres, amor eterno. tu choraste como um desalmado, sempre choras como um desalmado quando a tens perto, nunca soubeste porquê. se a amas ninguém sabe, nem tu, nem ela, tanto quanto julgas queres os corpos longe, como o carro longe, na estrada longe. não és feliz e a alma pesa-te mais no corpo com os braços voltados para sul.


. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/10/2008 09:59  Atualizado: 23/10/2008 09:59
 Re: 1
Gostei muito de texto, Margarete.
Escreve com uma sensibilidade que, ao mesmo tempo que nos faz fantasiar, também nos traz à realidade dura da vida.
Um beijinho.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/10/2008 11:39  Atualizado: 23/10/2008 11:39
 Re: 1
bom texto como o do outono...
aliás és uma escritora do outono...
sabias?

tem piada, apanho o 47 quase todos os dias, será outro...

Um grande abraço.

Enviado por Tópico
luísfilipepereira
Publicado: 24/10/2008 13:03  Atualizado: 24/10/2008 13:03
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 Re: 1
Mais um excelente texto com a tua co-natural exímia escrita. desta vez a despenhar-se sobre o amor com seu negativo latente, à espera, sempiterno no seu silêncio activo. o desamor à espreita: ameaça ou desafio. queda sem concessões de qualquer modo. por isso o texto balouça por dentro do choro ou é a vida, dorida como só a vida o é - e a literatura não enfeita, não a adorna - a empurrar-nos no baloiço que em nós bate como bater do coração que não comandamos. porque "o amor é uma noite a que se chega só" (José Tolentino Mendonça, in A Estrada Branca".
Um beijo rasando o mar.
luís filipe pereira
www.lippepereira. blogspot.com