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Isabel. Isabelinha, assim a chamava a mãe, mesmo quando para desferir-lhe uma seta de dor, um traço acusador ou simplesmente uma seta de nada e por nada Isabelinha.
Isabel, quarenta e nove anos, como fugir ao nome, como fugir às sílabas exactas da idade?
- por que te olhas tanto ao espelho?
-deixe-me mãe, deixe-me olhar o rosto enquanto ainda não é tarde, deixe-me olhar a angústia_____________________a solidão do meu rosto enquanto ainda é o meu rosto, enquanto o meu rosto não é ainda a solidão e a angústia vogando até outro rosto que já não será o meu rosto
-é com ele que falas isabelinha?
-deixe-me mãe, peço-lhe que me deixe falar com o espelho, o espelho ouve-me na proximidade da boca, o espelho diz-me que os meus amantes virão buscar-me mais tarde, quando o espelho for uma fresta, não uma ruga, uma fresta altíssima e dura, não uma ruga soterrada por outra ruga mais longa por outro ruga mais ruga, uma fresta, um intervalo, uma festa da falta
-por que te olhas tanto ao espelho?
-para descobrir um amante fora de mim mesma, essa é a parte negativa do meu trabalho de olhar-me
-nunca se apaga o espelho?
-quando a luminosidade apagada está desbussolada nos meus olhos então o espelho cega num glaucoma tardio que me manda adormecer: é isso a realização de mais um passo para que o meu rosto continue sendo o meu rosto devido a que vou para o quarto apenas para adormecer com a luz do meu rosto na mão, com o fio do meu rosto preso aos meus dedos pelos corredores da casa e então pergunto-me, já longe do espelho, já tarde
Que melancolia do rosto no espelho poderá resistir?
-que horas são isabelinha?
-já é tarde
-e o teu filho, o teu filho já dorme?
- o meu filho deve estar imóvel dentro do som sem destino da noite inventando um pai que lhe contasse histórias e há-de adormecer inventando um pai, multiplicando pelo dobro e pelo triplo o desejo de inventar um pai que lhe contasse histórias antes de adormecer dado que se inventasse um pai para contar-lhe histórias vingar-se-ia de mim, facetando o sono para o lado insonhável da pergunta que é a intimidade que nos une: ao meu filho a mim ao pai que o meu filho inventa
que é a sua a minha a nossa
forma de ficarmos imóveis: a minha forma, mãe, de ficar imóvel quando o espelho expulsa o meu olhar e eu me levanto para somente ___________________________
e eu me levanto para percorrer inerte os inertes corredores da casa inerte, não para perguntar-me
Que melancolia do rosto no espelho poderá resistir?
para somente
adormecer quando já for mais tarde.
Mestre em filosofia e mestre em teoria da literatura. Publica dia 29 de Novembro de 2008 na fundação Agostinho Fernandes, Chiado, 16h., seu primeiro livro de poesia.