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a culpa: essa senhora de malas aviadas

 
ele encaixotou algumas memórias para guardar no sótão e com o corpo todo em apuros empurrou a sola dos sapatos sobre o soalho e o ranger da madeira lembrou-lhe os tempos antigos. corria descalço pelo chão forrado por uma carpete azul celeste, os calções feitos de um pano comprado na feira dos tecidos escondiam a parte gorda das pernas, a camisa de manga curta era fina como a pele das mãos, era magro e baixo e os seus cabelos encaracolados tapavam-lhe a visão periférica da sala. há distância de alguns anos a casa parecia-lhe pintada de silêncio e a mudez dos móveis inquietava-lhe no peito algumas recordações, lembranças que se contorciam no seu coração de enfermo, acomodou a mão na bengala e tentou dar alguns passos com o peso do seu corpo todo no braço. escondeu-se debaixo da mesa à espera que a tempestade passa-se, o pai gritava-lhe e o nome infiltrou-se nas paredes do corredor à sala, a camilha deixou passar algumas letras, o nome que lhe chamavam entrava agora em contra-ataque no seu peito e o pequeno corpo mal podia aguentar um golo. o pai arrastou a fúria pelo chão da casa, ao chegar à sala cheirou-lhe a presença de miúdo reguila, esticou a mão por debaixo da mesa e roubou-lhe a orelha, os tabefes seguintes ainda lhe doíam na face esquerda. a bengala era de madeira de eucalipto e tinha-lhe sido oferecida pelos filhos no Natal passado, o peso do seu corpo todo deitava-se agora em cima de algumas memórias, recordações que lhe ardiam no rosto preenchido de rugas. sentou-se no sofá e olhou a foto de seu pai pendurada na parede, perto do móvel, pensou: eu sempre te amei pai. e o homem chorou a culpa, de uma assentada .


. façam de conta que eu não estive cá .

 
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Margarete
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Enviado por Tópico
augustocola
Publicado: 14/10/2008 13:47  Atualizado: 14/10/2008 13:47
Da casa!
Usuário desde: 22/07/2008
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Mensagens: 270
 Re: a culpa: essa senhora de malas aviadas
E como fantasmas as memórias arrastam correntes no sótão. É como se você tivesse fotografado um momento revelando-o, mais tarde, em palavras. Perfeito!
Abraços!
Augusto


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/10/2008 13:52  Atualizado: 14/10/2008 13:52
 Re: a culpa: essa senhora de malas aviadas
e uma série de joaninhas invadiu o teu texto e fizeram um hino à tua prosa.

que não é de Proust, nem do tempo perdido, mas por lá anda.

avé!


M


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/10/2008 16:50  Atualizado: 14/10/2008 16:50
 Re: a culpa: essa senhora de malas aviadas
a expressão: ler com prazer, foi inventada para descrever o que sinto quando te leio.
sinceramente falando...
escreves como eu gosto de ler.
ficava aqui a ler, ignorando o resto...

obrigado Mar.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 14/10/2008 17:02  Atualizado: 14/10/2008 17:02
 Re: a culpa: essa senhora de malas aviadas
Eu sabia que já te tinha lido! A tua escrita é inconfundível.Raramente se vê alguém com um estilo tão próprio, Reconhecer-te-ia entre mil. Escrita ritmada, cheia de energia na narrativa. Sabes a que se deve. Obriga o leitor a ter necessidade de saber o que vem a seguir. Fantástica na narrativa, excelente o conteúdo.
Parabéns sou tua fã.
Beijo azul



Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 16/10/2008 07:31  Atualizado: 16/10/2008 07:31
 Re: a culpa: essa senhora de malas aviadas
Não é de agora e tu sabes que sempre gostei da forma como escreves.
Parabéns.

Bjs