ele encaixotou algumas memórias para guardar no sótão e com o corpo todo em apuros empurrou a sola dos sapatos sobre o soalho e o ranger da madeira lembrou-lhe os tempos antigos. corria descalço pelo chão forrado por uma carpete azul celeste, os calções feitos de um pano comprado na feira dos tecidos escondiam a parte gorda das pernas, a camisa de manga curta era fina como a pele das mãos, era magro e baixo e os seus cabelos encaracolados tapavam-lhe a visão periférica da sala. há distância de alguns anos a casa parecia-lhe pintada de silêncio e a mudez dos móveis inquietava-lhe no peito algumas recordações, lembranças que se contorciam no seu coração de enfermo, acomodou a mão na bengala e tentou dar alguns passos com o peso do seu corpo todo no braço. escondeu-se debaixo da mesa à espera que a tempestade passa-se, o pai gritava-lhe e o nome infiltrou-se nas paredes do corredor à sala, a camilha deixou passar algumas letras, o nome que lhe chamavam entrava agora em contra-ataque no seu peito e o pequeno corpo mal podia aguentar um golo. o pai arrastou a fúria pelo chão da casa, ao chegar à sala cheirou-lhe a presença de miúdo reguila, esticou a mão por debaixo da mesa e roubou-lhe a orelha, os tabefes seguintes ainda lhe doíam na face esquerda. a bengala era de madeira de eucalipto e tinha-lhe sido oferecida pelos filhos no Natal passado, o peso do seu corpo todo deitava-se agora em cima de algumas memórias, recordações que lhe ardiam no rosto preenchido de rugas. sentou-se no sofá e olhou a foto de seu pai pendurada na parede, perto do móvel, pensou: eu sempre te amei pai. e o homem chorou a culpa, de uma assentada .
. façam de conta que eu não estive cá .