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Era tarde. Era relativamente tarde. Tudo acabaria por levá-lo a concluir que era afinal excessivamente tarde.
O ocaso. A erosão do medo libertou-o, sim foi um grito de libertação essa fúria de ir.
Precisava agarrar-se a essa relatividade ilusória do tarde talvez não como um náufrago que divisa no horizonte um lenho inverosímil a que possa agarrar-se,
talvez não como um náufrago talvez antes como uma presa que cheira a pólvora e vai ao seu encontro_____________________________________
fascinada pela mancha de sangue no dorso do predador.
Por que não tentar o último encontro? Por que não ser cúmplice da morte aprazada? Ir, portanto, mesmo que tarde.
A manhã nasceu como as outras manhãs, cresceu como todas as outras ao ritmo da hora de ponta, do tráfego e das pressas introduzindo-se como febre no sangue de alumínio da janela.
Os dedos aproximando-se e afastando-se do telefone, dos fios emaranhados do telefone como se fossem os teus dedos. O ruído colando-se aos telhados dos prédios altos, o ruído massajando a pergunta renovada
Levantas-te?
a pergunta coagulada na parede vazia ou suspensa no parapeito, a pergunta agarrada ao parapeito, a pergunta ou tão só uma gralha atordoada com o barulho de sirenes igualmente com pressa. A manhã já tornada uma raiva, enquanto a mão desengatilha o telefone e o telefone escorrega. O cheiro da loção da barba e um corte e o bálsamo do sangue por estancar que atrasa a partida para o encontro que será tarde
QUE SERÁ TAR
DE
A minha pressa não é como a pressa que recorta a cidade além da janela, a minha pressa perdura num gesto acabado e inevitável: será que ela já deixou morrer o corpo?
Mãe não deixes morrer o corpo, estou a estancar o sangue do corte, espera que coagule, espera mais um pouco, mesmo que o tarde seja mais tarde, continua a acarinhar as minhas mãos com a minha memória das tuas mãos acarinhando-me. Quero senti-las um pouco mais, repete-as no meu cabelo, repete-as nas minhas pálpebras e volta-me o peito para o dia, para a manhã, mesmo que a manhã seja tarde. Não vês que o lume do teu sorriso na moldura é um beijo que me aquece?
A tua voz a vagar nesta casa é a tua, embora nunca me tivesses visitado nesta casa, é a tua voz, a tua voz calada é a tua voz, a tua voz no teu sorriso na moldura é a tua voz, embora a tua voz me acuse, embora a tua voz me diga que é tarde, embora a tua voz não volte a ser voz para me dizer que é tarde, ela é ainda e sempre uma pergunta e jamais, cedo ou tarde, saberei responder-lhe.
Uma pergunta prestes a desfazer-se em pó, como tu, mas uma pergunta,
deixa-me deitar-me no soalho, deixa-me esperar, enquanto uma buzina faz estalar o estuque
enquanto um pássaro é um gesto contra o vidro e também não lhe respondo
como posso responder-lhe se o pássaro é asas se o pássaro é braços pendentes? os teus, os meus ?
não respondia quando me pegavas ao colo e não havia o frio do som da buzina na parede e não havia o frio do som do meu corpo a deitar-se no soalho,
deixa-me dormir.
Vens contar-me uma história para adormecer?
deixa-me esperar o teu beijo antes de adormecer como quando vinhas dar-me um beijo para eu adormecer e dentro do beijo dizias Hoje nada de histórias porque já é muito tarde.
Lembro-me que quando não havia história eu ficava imóvel dentro do som sem destino da noite do som sem destino da solidão do sono inventando um pai que me contasse histórias
Onde está o meu pai?
e a pergunta a ampliar-se a pergunta a crescer dentro do sono e depois dentro do sonho e depois nada.
Merda, a pergunta ainda aqui a pergunta ainda aqui no bolor do soalho merda merda merda.
Um retrato meu em bebé espia-me, eu quieto, eu longíssimo
nas costas da fotografia a campainha do tempo a tinir E não és tu que me esperas sem saberes que me esperas, não és tu mãe, é a avó, é a avó com um tubo na boca é a avó a quem trocaram um tubo na boca pela terra na boca é a avó a quem trocaram a boca macerada pelo tubo pelos restos é a avó
os restos da avó num gavetão.
O médico para ti: Três meses no máximo. O médico não para mim devido a que eu aqui no soalho à espera que venhas contar-me uma história para adormecer.
Luís Filipe Pereira
Mestre em filosofia e mestre em teoria da literatura. Publica dia 29 de Novembro de 2008 na fundação Agostinho Fernandes, Chiado, 16h., seu primeiro livro de poesia.