A noite já ia alta. Bem comidos e bem regados, reuniam-se agora no átrio principal da pequena aldeia alentejana, em cujas proximidades, as grandes caçadas sempre se realizavam. Senhores das terras e dos montes, dos casarios mais altaneiros da vila, eram eles, a espaços, sempre que o Outono se adivinhava e o Inverno se consumava no desporto fidalgo das caçadas, que, invariavelmente, refloresciam o comércio. Diurno e nocturno.
As tavernas remodeladas recentemente sabiam-lhes os gostos, os affairs, as conquistas, as manias, para além de todas as fanfarronices costumeiras de quem, não com um grãozinho na asa, mas com a asa cheia de grainhas de vinho carrascão, soltava a língua in extemis … à semelhança daquela noite.
Heitor Coutinho, um dos convivas, do grupo de mais de uma dezena, talvez à hora dos mais lúcidos, mas também dos mais irreverentes, divertia-se a dar corda aos amigos, a espicaçá-los na arte de bem caçar “espécies cinegéticas”: codornizes, faisões, lebres e coelhos, ou porque não, javalis e corças … e nessas, nas variedades de “corças rurais” e “corças citadinas” como as cognominava, era incisivo e contundente. Lançava as achas à fogueira das vaidades de cada um na esperança de que, tocados no seu machismo duvidado se revelassem em novas e sempre mais escaldantes peripécias. E, regra geral, a metodologia surtia efeito…
Ludovico d’Arriaga, menino dos seus já quarenta e muitos anos, calvo prematuramente, solteiro e bom rapaz, filho de distintas famílias Eborenses, a viver à época na quinta da família alhures nas proximidades da Ericeira, sem ocupação definida que não o plantio de tulipas, efeminado e de meneios estranhos, fora, desde sempre, na roda dos amigos, tido como pouco apto para conquistas e procuras – destas e daquelas, das lebres e das corças… das casadas e das solteiras, das viúvas e divorciadas, mas que o próprio afirmava conseguir "caçar" sem esforço… Romances, de que se gabava só mesmo no meio. Da criadagem, que, segundo o próprio, lhe servia “romãs em taças de prata” ou “dióspiros maravilhosos”…
Mas só quando de grão em asa. Nunca doutra forma. No dia-a-dia, senhor de grande mutismo sobre questões afins...
O grupo das tertúlias costumeiras, duvidando, ria perdido e, claro, concluía sempre que, por “incapaz”, o Lulu das Tulipas, delirava. E que, jamais haveria de ter sucesso nas caçadas. Fossem quais fossem as espécies em causa.
Ora naquela noite Heitor Coutinho trazia à mesa redonda uma nova versão de Lulu… e, claro, estava disposto a tirar o assunto a pratos limpos.
- Conte-nos tudo, Lulu, ora vá lá, amigo, não seja tímido. Conte-nos do que se passa lá de Lisboa à Ericeira. Ouvi dizer que o meu amigo é uma fera, que o seu sucesso entre o sexo feminino anda nos top’s bolsistas… que anda para tirar o lugar ao Zézé Camarinha… Ora vá lá, o senhor é de outro nível, meu amigo, veja lá se nos deixa mal posicionados, não se misture com a ralé …
Ria a bandeiras despregadas. Lulu ruborescia, manejava os ombros, virava a cara de lado, esfregava as mãos e logo as escondia nos bolsos da capa alentejana que, friorento não dispensava nunca, nem numa noite de calmaria como aquela na abertura da época, no Outubro dos tempos …
Osvaldo de Mello e Sousa, outro dos comparsas, insistia:
- ...ora, Lulu, diga-nos como foi que tudo aconteceu. Sei que teve um percalço um dia deste, mas também sei que o mesmo só fez subir a sua cotação na praça … que agora as damas fazem fila em espera no seu telemóvel… para aprazar encontros.
Lulu, ou melhor, Ludovico d’Arriaga, aparentado por portas travessas, que disso fazia gala, com as melhores famílias deste país, nada dizia. Mudo e quedo, guardava segredo das suas artes, que nisso, tal como na arte de cultivar túlipas das melhores castas, era rigoroso. O segredo, como sempre de alto a baixo da linhagem se dizia, era a alma e o corpo consanguíneo e a seiva pulsante do negócio.De qualquer negócio. Não falaria. Jamais. Que pensassem o que quisessem, que se digladiam-se em fúrias de saber. Era-lhe indiferente. Não tinham sido eles que lhe haviam colocado o epíteto de “efeminado”?. Pois que mantivessem a crença. Que a divulgassem entre as esposas e amigas. Por ele, havia algum tempo que tinha resolvido a questão …
- Não conta Lulu? Pois saiba que vou contar tudo e já e aqui… quem sabe não serve a lição a algum?... menos “apto” …
Heitor Coutinho sentia o “rabo-de-palha” a arder. Das suas conquistas, dos seus devaneios, se falava nos corredores do Parlamento, na Bolsa e na Câmara do Comércio. Lisboa inteira sabia do caso da “cadeira veloz” … não se podia dar ao luxo de Lulu também entrar em posse daquele trunfo. Repentinamente calou-se. Mas já era tarde demais, a partir dali, seria sempre em frente, um após outro iriam soltar a língua …
Osvaldo, bem bebido, cambaleante, começou …
- Não conta Lulu? Conto eu. Seja. Então não se dá o caso que Lulu, o nosso Lulu, tem uma capacidade infinita de satisfazer as damas? Pois é meus amigos… para além do tempo todo de que dispõe, dispõe de mecanismos de prazer eficientes, saibam os senhores… conta, Lulu??? Não? Então eu avanço. Pois saibam os senhores que, numa das visitas à Holanda para aprimorar a técnica do plantio das Tulipas, o Lulu descambou numa sex-shop … (risos) e, dizem, veio de lá na posse de todas as técnicas presentes e futuristas. Ora ai está. Florescem-lhe tulipas nas pedras da calçada, é o que é… mas, como não há bela sem senão, um dia destes, uma “corça assanhada” com que se cruzou e a quem ofereceu a “túlipa rosa”, acordou em gritos até os mortos do cemitério de Sintra, saibam pois vossas excelências …
Olhava em redor a medir o efeito das suas palavras. Lulu, descoberto ali, mantinha-se petrificado e os demais, temerosos de que as suas façanhas mais escabrosas viessem ao trombone, que os seus “rabos-de-palha” cruzados se revelassem, já lamentavam os excessos vinícolas do Reguengo e o empadão de lebre da dona Epifania …(bela produção aquela, valha-nos Deus… as duas).
Osvaldinho continuava:
- foi mesmo assim, acordaram aos mortos, que Deus os tenha no Santo descanso… Dizendo isto, fazia o sinal da cruz e beijava os dedos sobrepostos em igual sinal. Os dos jazigos e das campas rasas, todos, um a um … e, logo, herético e profano, avançava:
- a Dadinha capou-o!!! Exactamente, a Dadinha, a condessa de Travassos. Sim, essa mesma… capou-o meus senhores. O Lulu perdeu ali no acto parte do instrumento que a nossa amiga desconhecia nele. Foi Dadinha que o contou em segredo à minha esposa, são amigas como sabem. Ora escutem: Lulu, tímido como sempre, pediu a meia-luz. O som reproduzido do piano e as velas de cheiro e, claro as tulipas pelas jarras e pelo chão, eram, o cenário idílico e propício aos grandes encontros. Território neutro, como Lulu desejava. Um hotel perto de Sintra, onde poderia contar com a descrição dos funcionários, muitos deles antigos serviçais da sua casa. Aprazaram o encontro. Dadinha entrou pelos fundos. Lulu pela porta grande … bem, amigos, entre avanços e recuos, entre gemidos de cio e suspiros ansiosos pelo replay, Dadinha abençoava o momento e o “efeminado Lulu” em catarse de alma. O pior foi quando Lulu, num movimento mais brusco soltou – palavras dela -, “metade do coiso”… e, apressadamente o tentou recuperar, puxando freneticamente o preservativo retido nas suas intimidades. Não o conseguindo, aproximou-se de vela em punho, mostrando as miudezas diminutas e definhadas …
Dadinha morreu de susto meus senhores. Gritou na força de uma tempestade. Acudiram os mortos e os vivos … os criados e os demais locatários do hotel … não foi Lulu???
Lulu nada dizia. Estava branco de fantasmagórico. A risada era geral. Entre o divertido e o conivente. Entre o preocupado e o ansioso de uma nova história de caçadas a corsas citadinas… Heitor Coutinho desviava as atenções para a estratégia das portas para caçada da manhã seguinte … sem sucesso! A sua história a tal da “cadeira veloz” seria, ainda nessa mesma noite, ali colocada em pratos limpos e, quem dela não soubesse, saberia …
A noite ainda era uma criança afinal …
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