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ESQUINAS

 
Não me compadeço
deste grito que alcança
o infinito
chegando a escorrer
enquanto as portas se fecham.
Nem deste horizonte entalhado
que aparta o dia e a noite
incendiando cartazes
de ninfetas esquálidas, erráticas,
anjos da discordância,
sucumbindo na solidão cárnea
que arrebata a cor
de cada olho cego.
Não me compadeço
nem deste sol a pino
que seca a mão
e o ventre daquela que
inutilmente pode parir
e esconde o lençol
sujo de sangue e barro
colocando-se
na mira das carabinas.
Não me compadeço
destes pássaros famintos
e suas asas abertas,
estendidas nas paisagens da imaginação,
revelando a densidão de cada voô,
nem das suas carnes magras
que revestem a brancura dos seus ossos
enganosamente imortais.
Não me compadeço
desta multidão enlouquecida
e seu cheiro de urina
e suas sombras decapitadas
e seu riso febril,
instrumento de ladainhas,
que mistura angustia
e cal
no pão seco
dos filhos desta fome.
Não me compadeço
dos meninos e suas dores,
do sono dos homens,
das mãos calejadas,
do relógio que desandou,
da aliança que não se fez,
do sonho que acabou,
do cheiro do estrume,
da lágrima da virgem,
do pó da terra,
do leme do barco,
da vida em riste,
do muro triste,
da menina que ri.
Não me compadeço
do amor e seus tormentos,
seus véus caídos, seus aleijões,
sua desfigurada sonolência,
sua incerteza, sua covardia,
sua dor e seu humilhante ofíco de enganar.
Não me compadeço
da vida
nem da morte.
O que me seduz
é esta desesperada solidão arqujante
aflita, quente, sofrida,
engolindo-me a amplidão do olhar
que ainda contempla
noites frias e azuis
onde o silêncio propicia
o corte preciso e suave
e o gotejar solene
deste vermelho delírio insano
que corre em mim.











 
Autor
LuciaLópez
 
Texto
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Enviado por Tópico
Alemtagus
Publicado: 27/09/2008 11:23  Atualizado: 27/09/2008 11:23
Membro de honra
Usuário desde: 24/12/2006
Localidade: Montemor-o-Novo
Mensagens: 3408
 Re: ESQUINAS p/ LuciaLópez
Algumas imagens e formas míticas, bíblicas que faem crescer a curiosidade da leitura, mas que, por ser excessivamente extenso, se perdem na divagação e na tentação de escrever o absurdo que é sempre difícil, mas meritório. Quero ler mais.

Beijo

Enviado por Tópico
jessébarbosadeolivei
Publicado: 27/09/2008 11:31  Atualizado: 27/09/2008 11:31
Da casa!
Usuário desde: 14/09/2008
Localidade: SALVADOR, Bahia ---- BRASIL
Mensagens: 368
 Re: ESQUINAS
divagar que irmana o universo interno e o externo,
apesar de aparentar desdém por um deles.
não, vejo este desdém como um sofisma
que camufla conflitos e revolta; a contemplação
aplaca-lhe o vórtice que habita a alma.

Enviado por Tópico
Margô_T
Publicado: 15/07/2016 09:09  Atualizado: 15/07/2016 09:11
Da casa!
Usuário desde: 27/06/2016
Localidade: Lisboa
Mensagens: 308
 Re: ESQUINAS
Apesar de extenso, não lhe retiraria um único verso, já que o ritmo do poema está muitíssimo bem concebido e não há, a meu ver, qualquer dificuldade na leitura (até porque os versos são curtos, não o tornando demasiado “pesado”).
Um poema de imagens fortes e vocabulário muito bem escolhido.
Além do mais, o poema é puro antagonismo, uma vez que ao detalhar tão exaustivamente aquilo que “não compadece” o autor está, na verdade, a salientar aquilo que o compadece.
Um “grito que alcança/o infinito”, que, ultrapassando as portas fechadas, nos põe “na pele” desse “olho cego” de quem foi “arrebatada a cor”, nos aflige com as “carnes magras/que revestem a brancura” dos “ossos”, nos lembra que todos somos “enganosamente imortais”, bem como “das mãos calejadas”, “do sonho que acabou” e “do amor e seus tormentos”.
A solidão “aflita, quente, sofrida” não engole a “amplidão do olhar” de quem escreve este poema, já que as “noites frias e azuis” se ouvem por entre estes versos, num “gotejar solene”, neste “delírio insano”, que escorre de quem
se compadece.
Fortíssimo!