Não posso dizer que ela fosse particularmente bonita ou interessante. Na verdade mal falámos, mas o olhar que me lançou por cima da terrina da sopa ficou gravado a ferro quente na zona do meu cérebro responsável pelas emoções românticas, que até então estivera desactivada. A minha mãe, com a sua extraordinária capacidade para desvendar os sentimentos alheios, provavelmente devido à ausência de sentimentos próprios com que se entreter, topou logo tudo e encarregou-se de organizar novas oportunidades de convívio.
E foi assim que pela primeira vez na minha vida me dediquei a jogos de conquista e sedução, com uma compreensível falta de jeito, considerando a minha inexperiência e fraca predesposição para a simulação inerente ao engate. Surpreendentemente não me saí mal! Não que ela se mostrasse particularmente entusiasmada. Na verdade, acho que o entusiasmo não fazia parte do seu espectro de emoções. Mas aceitou os convites que lhe fiz para sair, não fugiu perante a minha conversa idiota e os meus avanços desajeitados, e conseguiu não rir às gargalhadas na nossa primeira noite juntos. Do namoro ao noivado foi um passo e quando dei por mim estava casado.
No início as coisas correram mais ou menos bem. Sentia-me tão feliz com a minha nova condição de ser humano normal e plenamente integrado que não me importava de fazer a festa, deitar os foguetes e apanhar as canas. Mas aos poucos fui tentando penetrar na carapaça de rainha do gelo da minha mulher, ao mesmo tempo que me procurava revelar cada vez mais perante ela. Para além da embalagem do socialmente correcto eu ambicionava alcançar aquilo que idealizava como o conteúdo fundamental de um casamento (para além do sexo, claro!!), o qual deveria implicar algum grau de conhecimento e compreensão mútuos.
O facto é que eu não conhecia verdadeiramente a minha mulher. O seu carácter distante e aparentemente intocável fora por mim interpretado de forma a encaixar convenientemente nas minhas fantasias e desejos, e a sua aparência de frieza apresentou-se-me como sinal da profundidade de um espírito meditativo e melancólico (sim, confesso a minha veia lamechas de telenovela venezuelana!).
Ao longo do tempo as incompatibilidades entre nós tornaram-se cada vez mais óbvias, como óbvio era o seu desinteresse absoluto por tudo o que me dissesse respeito e ultrapassasse o âmbito restrito do meu papel público de marido perfeito. Sentia-me como uma cebola sufocada por uma camada exterior demasiado apertada, mas que era a única que interessava a todos os que me rodeavam. As minhas aspirações e ambições mais profundas, e até os meus gostos e impressões mais passageiros, não eram partilhados e morriam estéreis dentro de mim. Agora que finalmente estava acompanhado sentia-me mais sozinho do que nunca e pela primeira vez na vida invejava o percurso solitário do tio Edgar. [como ficou um bocado longo, continua no blog - 2 partes que faltam]