a noite é fria nos teus olhos sobre mim, pousas a mão no joelho e a tua boca serve de bandeja a sonhos que se selam entre os lábios, ficas assim, sozinho como um cão abandonado, a latir. ficas assim e a vida que te cabe no coração é pequena, pequena como a dor que carregas na vesícula biliar e te dói na barriga ao canto, tão forte que de gatas te contorces e gritas com uns ais e uis presos às paredes da boca. são os beijos ou a falta deles, são portas abertas à espera que alguém entre, diga um bom dia delicado e se sente no hall com o coração nas mãos para to entregar. sempre foi assim, até ao limite das horas na madeira oca do relógio que morre nas paredes da sala, até ao autocarro que adormece contra os candeeiros da rua nas mãos de um motorista velho, até à mercearia onde os legumes secam como o sangue nas tuas veias. tudo morre sempre como da primeira vez, fechar os olhos para nunca mais abrir, correr a vida num segundo e bater os recordes do Guinness, chorar a última lágrima e dar o último arroto num brinde a tudo o que fomos. ser poeta por opção só porque se lêem uns poemas no intervalo da bola, dizer poemas aos amigos a meio de uma churrascada, cruzar as pernas e esperar que as noites façam cair os cabelos e a pele até ao interior de uma velhice que herdamos, todos. e tu ainda de olhos postos no meu corpo como que a pedir colo, a ganir, abandonado ao canto da sala de espera. alguém desliga o coração, pálido como o equipamento do paços de ferreira, dois corpos invadem o espaço em corrida, atletas de alta competição que reanimam um corpo estendido, nós alados de tudo ouvimos o bater do coração, o último, parece-nos. morre. o poeta levanta-se e brinda à vida com um copo de aguardente na mão, a camisola ao contrário para parecer artista, fala longo, devagar para mostrar que sabe, entre goladas todos o admiram, boquiabertos pelo respeito que lhe têm e a terra dele, um hino qualquer que meta a palavra amor ou mar ou Portugal chega-lhe para ser nome de rua, avenida e até rotunda. de volta à sala, tu continuas com uma espera entre os dentes, dizer o teu nome parece difícil demais até que a senhora te aponta o dedo, levantas-te e sais, tu, eu continuo aqui, para ficar o resto da noite agarrada a um saco de soro.
. façam de conta que eu não estive cá .