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a minha velha infância

 
Tags:  é cancro.  
 
era póstumo a nada, desapertar os cordões e já descalça correr monte abaixo, sem medo, sem nada que me impedisse de existir livre como os pássaros, de existir virgem como os meus sentimentos. era assim todos os dias, cair por entre a erva e ouvir ao longe as ovelhas, dar pontapés ao ar e desenhar nas nuvens mil e uma formas de ser feliz. era a voz da minha mãe a romper o meu riso, o chamamento do final do dia que a noite não tardava a cair, o recolher obrigatório das ovelhas à corte e eu a lavar-me num bacio pequeno como os meus pés. era a noite a dar voz aos lobos no monte, a noite e os grilos a jogar às damas no quintal atrás da janela do meu quarto, era a noite a durar pouco mais do que durava a infância quando se sacudiam esperanças como quem sacode migalhas da roupa. era a manhã de novo, seis horas certas e os berros das ovelhas a chegar com o cheiro a leite acabado de ordenhar, eram os meus passos pequenos a inteirarem-se da maremita num saco às costas e o cajado na mão, as ovelhas em fila à minha frente e o velho cão, xavier, com a língua de fora ao meu lado monte acima. era assim que deveria ter sido, para sempre assim a lembrança feliz da infância, o eterno retorno, era assim que deveria ter sido. não era suposto recordar o sangue a manchar-me a pele, os gritos de um xicote que me pintou as costas, os braços, os pés pequenos, de negro, e tu mãe, tu a olhares e a rires, a mandares-me de volta à rua para noites que pareciam anos, a tentar adormecer por entre o uivo dos lobos mãe. e o eterno retorno à infância feliz é-me impossível de ser desejado, não o quero agora, nem que mo pintem de ouro. fico assim sem ter nada, nem passado que fuja, nem futuro que acredite, só. ficar assim chega-me ao menos para continuar a viver, ainda que me saiba a morte esta vida, ainda que...


. façam de conta que eu não estive cá .

 
Autor
Margarete
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