Olho a pedra da calçada, suja, gasta… os meus passos ecoam na noite, viela escura, só interrompida pelos fogachos que me chegam das janelas. O berro de uma mãe aos filhos interrompe o silêncio imperioso, voz agreste, esgotada da antipatia do motorista do autocarro, fatigada pelo mês que lhe sobra no fim do ordenado, cansada do marido cuja mão já não a acaricia, extenuada pelos berros das crianças que passaram o dia entregue a elas próprias, fustigada pelas contas por pagar… O som já lá vai para trás e as minhas cogitações são interrompidas por um vagabundo que me pede um cigarro num murmúrio envergonhado da sua própria condição, olhos vítreos do último caldo, ombros que carregam as culpas do mundo, nos braços lê-se o sol poente em que se tornou. Dou-lhe o cigarro e sigo jornada, por baixo de um beiral algo se mexe, ombros desnudos revelam uma pele gasta, uma caixa de cartão aberta separa-a da calçada, puxa o cobertor nauseabundo – tesouro para ela – de encontro ao pescoço tentando proteger-se do orvalho que a noite promete. Mais á frente uma mulher que já viu melhores dias promete-me o céu, barato, segundo ela.
À medida que caminho, do fundo da viela irrompe uma claridade que surge súbita interrompendo o escuro da noite, desemboco na avenida prenhe de luz e sorrisos acariciados pelo álcool, os néones batem-me nos olhos como que me chamando para o meu mundo, gargalhadas felizes ecoam pela avenida, alguém alheio a isso tenta vender pensos e outras bugigangas prontamente ignorado pela felicidade que escorre avenida abaixo, casais que debicam beijos e promessas de fim de noite. Sente-se no ar o cheiro almiscarado de um charro fumado á pressa para complementar a felicidade que reina. Os meus interstícios dão-me um sinal inconfundível, olho em redor, outra viela em tudo igual á outra, - sim, vou fazê-lo, vou… - coloco-me na esquina e deixo que a urgência tome conta de mim, um liquido amarelo escorre pela avenida, pungente, real… Olho fascinado como que tomado por uma visão de coruja o destilar de todo o mijo do mundo…