Há muito tempo não ia a um casamento…
Primo Gustavo é filho da Eliane, prima de minha mãe por parte de mãe. Assim, sendo a prima uma autêntica parente em quarto grau (porque a gente tem que contar de parente a parente, grau por grau, até o ascendente em comum e descer pelo outro lado), o Gustavo é meu parente em sexto grau. Algo próximo a um parente distante que costuma te ligar toda noite de Natal. Tudo bem, primo Gustavo é algo um pouquinho mais longínquo que isso, porque não me lembro de nunca tê-lo visto na vida e também não lembro de termos nos falado em nenhuma noite de Natal. De toda forma, ter ido ao casamento dele não foi um crime tão grave assim. Primeiramente, e antes de qualquer outra coisa, porque fui convidada. Em segundo lugar, porque costumo encontrar a mãe e o pai dele, que têm um sítio em terras contíguas à Fazenda da Vargem, toda vez que estamos por lá.
Primo Gustavo, de rabinho de cavalo e tudo, estava a cara do Lucas Lima, namorado da Sandy (& Júnior). Mas não ia adiantar contar isso para ele, porque ele mora há seis anos nos Estados Unidos e está aqui só de passagem, para celebrar o casório e voltar são e salvo para terras alienígenas.
A noiva do Gustavo, chamada Kim, era (e digo era porque agora já ascendeu na escala social dos afetos: agora já é esposa) uma americana baixinha, gordinha, bonitinha e sestroza. Kim é muito simpática mesmo, independendo de legendas. Imagino que daqui a uns dez anos e dois filhos depois, primo Gustavo não vai mais saber quando ela estiver em pé ou deitada. Kim vai virar, pode se dizer assim, um quadradinho perfeito. Mas isso é maldade de anoréxico, só pode ser.
Kim veio com a simpática família americana à qual pretence. Sua mãe é uma senhora muito simpática. Seu pai, além de simpático, dança muitíssimo bem. Sua irmã mais velha, e mais magra também, dança igualzinha a Kim. Seu irmão mais velho (que veio com a esposa que só podia ser gordinha também) parece um miliquinho americano típico de películas bélicas. Nenhum deles sabia sequer suspirar em português. Talvez por isso sorrissem tanto.
A casa de festas fica no pé do Alto da Boa Vista. A cerimônia foi um tanto íntima. Perto de 50% dos participantes do evento não puderam comparecer por questões geográficas. De toda forma, acho que tinha um bom bocado de americanos infiltrados naquele evento matrimonial.
A cerimônia foi ecumênica, mas o encarregado pela liturgia não tinha intimidade com a oratória e não conseguiu ultrapassar o conhecido território de que a aliança tem o formato redondo pois o círculo representa a eternidade: não tem começo, nem fim. Ora bolas, todos sabemos que as alianças são redondas apenas porque nossos dedos não são quadrados…
Um amigo do meu primo Gustavo fez um discurso e, na falta de legenda, traduziu para os convidados importados parte a parte. Até que o discurso do rapaz começou bonitinho mesmo. Começou falando sobre uma lei da física: a lei da ação e da reação. Falou (e eu já nem me lembrava disso mais) que quando a gente anda, a gente empurra a terra para baixo e para trás, e que a terra empurra a gente o mesmo tanto para cima e para frente, mas como a massa da Terra é muito, muito maior que a nossa, a gente anda e a terra permanece, na língua do nosso ministro Magri, imexível. Gente, a essa altura eu estava pronta para ser surpreendida positivamente. Bem, aí o texto ficou todo enrolado e no final das contas estávamos sendo convencidos a unirmos todas as pessoas do mundo num único continente e pularmos todos ao mesmo tempo para ver se alterávamos por um infinitesimal segundo o movimento do nosso planeta azul. Boiei.
Depois foi a vez do irmão da noiva falar: aquele que saltou para fora da tela de Platoon (tal qual a Cecília/Mia Farrow no filme “A Rosa Púrpura do Cairo” do Woody Allen). Este discursou em inglês mesmo, depois de umas breves palavras em um português arrevezado, mas emocionante (e emocionado). O amigo do meu primo Gustavo foi quem traduziu o texto parágrafo por parágrafo novamente. Este rapaz americano também não sabia para onde ia o texto que o levava. Resolveu falar sobre formas de amor. Teve um momento em que falou sobre o amor da mãe que rasgava o seio para dar leite ao filho durante a seca. Rasgar o seio, em qualquer lingua, é uma figura que me esquarteja a alma poética. Em outro momento falou sobre a mulher que aprovava que seu marido – que tinha perdido a memória sei lá porque cargas d`água – se casasse com outra mulher, por quem ele tinha se apaixonado, uma vez que não se lembrava mais da esposa, nem da vida que tinha tido com ela. Até o Martin Luther King esteve presente no texto para tentar salvar a mensagem. Mas desta vez não só eu boiei, como o texto naufragou. A única parte bonitinha do texto do soldadinho foi um texto de Shekespeare.
“De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.
Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.
Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfange não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma para a eternidade.
Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.”
A cerimônia também teve direito a um minuto de silêncio. Durante este tempo tivemos que permanecer com a mãe esquerda em posição “Hey, Hitler!” desejando felicidade aos noivos. Que mais poderíamos desejar, se estávamos ali para isso mesmo!? Não entendo…
Finda a celebração, seguimos para o coquetel que era ali na mesma casa aconchegante onde foi realizada a cerimônia. Escolhemos uma mesa pertinho da piscina (enfeitada de flores e palmas). No telão estavam sendo projetadas fotos dos amigos e da família dos noivos. Interessante observar que duas pessoas da mesma geração em países diversos vivem sob conceitos fotográficos tão diferentes. Uma foto oficial de uma escola americana é (e sempre será) uma genuine foto oficial de uma escola americana. Isso é o máximo! Outro aspecto interessantíssimo é que o gato Garfield mora mesmo é lá nos Esteites, mais exatamente na casa da Kim. Gato igual àquele não mora em terras tupiniquins.
Não estávamos derretendo, nem congelando. Nossas roupas ficaram na medida certa (em todas suas possíveis acepções). Não estávamos faltando, tampouco sobrando. Acabei usando meu xale de cabelo (que é como costumo chamá-lo porque tem longos fios pretos) que era a única graça do meu indefectível calça/tomara-que-caia pretos.
O primeiro garçon que se aproximou da nossa mesa era uma simpatia em pessoa. E todos os demais que nos serviram depois também pareciam felizes em estar trabalhando naquela festa num sábado à noite. Pareciam militantes do PT em dia de passeata nos áureos tempos do “Fora Collor”. O vinho era branco, mas no final das contas, era vinho. Adoro vinho! Ainda que pouco entenda dele. Os salgadinhos estavam perfeitinhos como devem ser. E os docinhos e o bolo, que foram servidos no final do serviço, me fizeram perder outra vez de 5 a 0 (com direito a uma meia fatia de bolo aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo).
Meu primo Gustavo inaugurou a pista dançando um tango com a Kim. Depois disso, as meninas dominaram a pista. Meu bom Deus, quanta mulher no salão! Superada a fase do tango e do tecno. Uma vez que o DJ pareceu enfim sorrir para mim e botou para tocar um soltinho, resolvi dançar também. Fiquei de olho num rapaz que me pareceu ter feito aulas de dança de salão (e por sinal era o tal amigo do primo Gustavo que discursou no púlpito durante a celebração). No espaço democrático dos bailinhos do Jayme Arôuxa, dançar com outro homem não tira de ninguém um naco, tampouco a boa reputação. Pensei em chamá-lo para dançar comigo para rodopiarmos sob o globo de luz, mas sob os olhares de censura da minha cunhada, fiquei inibida, e assim perdi a oportunidade de não me sentir uma tia velha no meio do salão.
Depois o DJ cansou do soltinho básico e tocou aquelas tradicionais músicas americanas de discoteca: “It’s Raining Man”, “YMCA” e “I Will Survive”. Neste momento descobri que os americanos também dançam algo próximo à nossa tão conhecida e vizinha “Macarena”.
Os noivos distribuiram óculos, chapéus, écharpes, pulseiras e colares de neon aos convidados dançantes e umas moças distribuíram Havaianas cor-de-rosa para as meninas descerem dos saltos.
A esta altura já estava quietinha na minha mesinha conversando com a Ana Maria, que é tia do primo Gustavo e também prima da minha mãe (que assim sendo, e sendo assim, é minha prima também). Conversa vai. Conversa vem. Quem se aproxima da mesa? O tal rapaz com quem queria ter dançado. Ele abraça a Ana Maria. Aí minha cunhada começa a rir, como se meu crime (?) não tivesse sido tão grave assim: afinal, além de ter 13 anos a menos do que eu, o rapaz com quem eu queria ter dançado, também era meu primo. Como se tudo isso não fosse suficiente, Primo Carlos tem justamente o mesmo nome do meu irmão, o que para psicologismo da minha cunhada tinha implicações severíssimas. E fez com que ela e o vinho que tinha degustado ficassem rindo zombateiramente de mim.
Primo Carlos era muito mais desconhecido meu do que o noivo e primo Gustavo era. Afinal de contas, primo Gustavo muito parecia o Lucas Lima, e este eu já tinha visto nas revistas Caras muitas vezes na vida, no salão da minha manicure Ademes.
Que mais podia fazer, depois de ter tentado alegar minha inocência para minha cunhada e não conseguir por um segundo sequer demovê-la daquele seu olhar “sei bem o que você deve estar pensando quando pensa em tirar um homem desconhecido para dançar com você…” senão contar tudo para meu primo Carlos e falar que ele tinha sido “aquele que foi sem nunca ter sido” meu par dançante no salão. Primo Carlos ficou só sorrisos com aquela história sem pé nem cabeça e disse que fazia aula no Carlinhos de Jesus. Mas a tribo das Havaianas cor-de-rosa, a esta altura do pileque, já estava até dançando Xuxa com as Havaianas penduradas nas orelhas. Primo Carlos prometeu que dança comigo de uma próxima vez. Foi então que aproveitei que meu primo Bruno estava presente e decretei que dançaríamos na festa de casamento do primo Bruno. Que com 18 anos, um pé na PUC e outro na UFF já jurou que não casa tão cedo não.
Mas quando a Kim jogou o buquê as meninas casaidoiras estavam todas lá, afoitas e aflitas, esperando ganhar o grande prêmio. Primo Bruno dessa vida ainda não sabe mesmo de quase nada.
Ana Heide (22/06/2008)
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