Contos : 

O CRENTE - Um homem de fé

 

Enquanto o relógio anunciava através das badaladas 11 horas, ele permanecia inerte sobre o catre que já ocupava durante tanto tempo. Não era castigo apenas um ato de auto-padecimento a que se impusera. Precisava purgar seus últimos pecados. A doença era apenas um detalhe.
Eram tantos os pecados que muitas vezes se sentia envergonhado de olhar o espelho. Seu próprio reflexo lhe cobrava atitudes. Ele se colocava como a figura de impiedoso juiz a lhe exigir mudanças.
Ele era um fraco, não conseguia ir além do lugar já acostumado em outras idas. Sofria em saber que o tempo expirava e ainda não fora perdoado, pois Jesus ainda não viera para dizer-lhe que ele alcançara a salvação. Essa promessa ele não esquecia. Seu pastor fora tão incisivo que conseguira inculcar em sua mente aquela cena.
Quase sempre imaginava ver Jesus descendo das nuvens e após chegar ao seu lado estendia-lhe a mão e o convidava a segui-lo. Sonho ainda insatisfeito. E se não fosse perdoado? Nestes momentos de dúvida via o oposto de seu desejo.
O demônio fedendo a enxofre, com seu tridente em brasa viva, lhe cutucava os fundilhos e o obrigava a seguir em sua frente, enquanto o martirizava, cutucando-o.
Precisava pagar seus pecados antes que a décima segunda hora chegasse, por isso ficava todo o tempo orando e pedindo perdão.
Além de fraco, ficara quase a vida toda esperando que o seu Deus, viesse livrá-lo das dificuldades e até mesmo de suas agruras. Mas, ainda não o escutara ou vira qualquer ser que pudesse parecer com a imponente figura que lhe fora mostrada. Queria purgar seus pecados, pois desejava a vida eterna, o céu. O demônio do inferno teria que se contentar com o seu vizinho que se recusara a segui-lo e participar daquela igreja salvadora. Faltava pouco tempo. Às vezes ficava sorrindo de felicidade em ver o pobre vizinho sendo cutucado pelo capeta rumo ao inferno, enquanto ele se deliciava com as coisas eternas do céu, ao lado de Deus.
Mas, onde estava Jesus que ainda não aparecera, já que se encontrava com tão pouco tempo de vida? Teria sido esquecido? Não isso jamais aconteceria, porquanto ELE, como filho do PAI tinha compromisso com seus eleitos. Todos aqueles que foram fiéis e obedientes e pagaram seus dízimos estavam salvos.
Apesar desta certeza, vez por outra a dúvida lhe assaltava. E se fosse esquecido, para onde iria? Se não fosse para o céu como lhe haviam prometido e se não tivesse pecados suficientes para ser jogado definitivamente no inferno, ficaria onde?
O pastor lhe havia prometido o céu, afinal sempre fora cumpridor de todos os preceitos escritos no grande livro. Seguira rigorosamente tudo o que lhe fora ordenado. Não devia duvidar das promessas, da palavra. Afinal a bíblia tinha sido seu livro de cabeceira nos últimos anos.
Onze horas e trinta minutos e, nada. O som estridente do enorme relógio, ia marcando os minutos com um tic-tac que já se tornava cansativo. Teriam adiado seu dia? Não era possível ter acontecido isso, afinal fora essa a promessa que lhe haviam feito. E se passar da meia noite e ELE não vier, o que faria?
Tinha que afastar da mente as dúvidas. Afinal onde estava sua fé? Não podia deixar que a dúvida viesse lhe afastar do caminho do senhor, por dúvida, falta de fé ou medo. Não, isso não iria ocorrer, o céu era o seu destino e falava tão pouco tempo que seria uma afronta a Deus duvidar das palavras daquele homem santo que fora mandado para pregar a palavra a todos daquela igreja.
Não tinha mais nenhum apego às coisas materiais, portanto, nada impediria seu caminho. Aquele santo homem se sacrificara por ele ao aceitar todos seus bens para a igreja. Ele estava, pois livre e pronto para ir, de mãos dadas com o senhor Jesus rumo ao encontro de Deus que estava no céu esperando-o. Seria muito longe? Será que iriam demorar a chegar lá? E se Deus lhe fizesse perguntas que não soubesse responder? Bobagem, não precisava se preocupar com isso, pois Jesus era seu condutor e todo aqueles que estão de mãos dadas com ele, já foram aprovados aos olhos de Deus.
Qual seria o tamanho de Deus?
Mas, como será que Jesus faz para levar tantas pessoas ao céu de mãos dadas ao mesmo tempo? Afinal morrem milhares de pessoas puras como ele ao mesmo tempo. Como será que ele faz? Nossa! havia se esquecido de perguntar isso ao pastor. Ele sabe de tudo e poderia ter-lhe dito isso. Mas, agora isso pouco importava. Quando chegasse a hora ele veria com os próprios olhos esse milagre de Jesus. Mas, que era estranho... era.
Apenas cinco minutos o separava da tão esperada vida eterna. Tinha feito tudo que o pastor lhe havia recomendado. Tomara todos comprimidos para aliviar a dor. Só faltava um, que deveria ser ingerido no último minuto de vida, para que a transição fosse indolor e sem traumas. Jesus já não deveria estar esperando-o ao seu lado? Será que teria que tomar o comprimido primeiro para depois ver Jesus? Já não se lembrava muito das recomendações daquele homem de Deus, seu representante na terra. Aquela sonolência também lhe incomodava. Talvez fosse o princípio de sua ida para o céu.Ele queria tanto ver Jesus!
Com dificuldade levantou-se pela última vez e com passos lentos, apoiando-se nos poucos móveis que havia, pegou o copo que ainda continha um pouco d’agua e depois de colocar o último comprido na boca, com um gole do líquido, engoliu-o e sem demora, voltou a deitar-se na tosca cama.
Enquanto aumentava sua dor, lembrou-se das palavras do pastor:
“-O último comprimido, este aqui, irá lhe aliviar todas as dores”.
Mas como, se a dor foi aumentando até aquele momento em que ficou livre completamente dela?
Sobre a cama um velho e desgastado corpo jazia inerte e quase frio, saia da boca deste grossa espuma. Ele, de pé ainda esperava Jesus. Olhou em todas as direções e somente viu outras pessoas comuns ao seu lado.
Enquanto procurava distinguir Jesus no meio destes, um se aproximou e disse-lhe:
- Vamos amigo, você precisa de repouso para se refazer deste seu ato tresloucado.
- Não, eu só saio daqui com Jesus, ele vai me levar para o céu.
- Céu? Meu irmão isso não existe, é invenção de alguns espertalhões para conseguir enganar pessoas ingênuas como você.
- Mentira! você está mentindo, deve ser mensageiro do demo. Eu não vou com você, vou esperar Jesus!
- Mas meu irmão, isso não é possível, você precisa nos acompanhar para se livrar desse trauma que surgiu em decorrência dos enganos. – Venha, vamos que depois iremos explicar tudo como funciona aqui.
- Não! afaste-se de mim tentação, deixe-me em paz, só saio daqui com Jesus.
Enquanto transcorria o diálogo entre o eleito de Jesus e seu guia, outro que permanecia calado, esperando ordens dirigiu-se ao chefe do grupo e disse:
- Irmão, parece que ele precisa ser adormecido e levado contra a vontade, já que não consegue entender que acabou de cometer um suicídio induzido por aquele que deveria ser seu guia espiritual na terra.
- É, tem razão aquela figura demoníaca, tem enganado muitos usando o nome de nosso mestre maior, mas somente é enganado aquele que assim deseja. E complementou sua fala: - não podemos fazer nada além de adormecê-lo para levá-lo e evitar maiores danos.
Enquanto este se aproximava do recém-chegado, para adormecê-lo e levá-lo, somente ouvia-se dele:
-Afaste-se de mim demônio, eu só saio daqui com Jesus.
- Coitado, mais uma vítima do engano e do medo. – Venham, vamos levá-lo.
Ainda bem cedo quando a enfermeira entrou no quarto, encontrou o corpo do paciente duro e frio sobre a cama.
Depois do laudo e do atestado que foi fornecido pelo médico, o pastor com ar de enorme de sofrimento conseguiu expressar suas palavras enquanto se dirigia para fora do quarto:
- Pobre coitado, não conseguindo suportar a dor do câncer que o corroia, cometeu o suicídio. - Que Jesus tenha pena dessa pobre alma. Enquanto saia, lágrimas escorreram de seus olhos.
O médico vendo aquela comovente cena confidenciou à enfermeira:
- Esse homem realmente é um santo.
Quando a última pá de terra foi jogada sobre o túmulo o oficiante do culto num ato de pura teatralidade grita para que todos vejam e ouçam:
- Eu estou vendo, nosso irmão está aqui e ao seu lado estão Jesus e Moisés.
Os presentes num ato de fé, gritaram em uníssono:
- Aleluia, aleluia, aleluia, Jesus seja louvado.
Enquanto a platéia histérica era conduzida pelo espertalhão, este só pensava na fortuna que o pobre defunto havia lhe deixado. E para completar todo cenário daquela trágica comédia, arrematou:
- Segue com Jesus, irmão! e rogai a ele por nós.
- Aleluia, aleluia, aleluia.


27-06-08-VEM



 
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VanderleisMaia
 
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