um dia morremos os dois, eu tranco-te as portas e selamos cartas que se começaram a escrever no primeiro dia em que nos vimos. um dia, digo eu, morremos os dois e forçosamente levaremos connosco os tempos em que vivemos. um dia seremos apenas pó em cima de um caixão pesado porque dentro desse caixão só levarão os ossos de dois corpos que se amaram. o dia, entre todos estes dias, há-de chegar demansinho e haverão alguns, poucos, rostos a chover-nos em cima, lágrimas, de crocodilo às vezes. no dia, de todos os dias, a pressa se fará infortúnio de uma desgraça em tempos de poda e os melhores fatos serão vestidos por quem nós sabemos, a missa será celebrada por um qualquer padre, a mim não me interessa que batina traga mas preferia que fosse a do tempo comum, verde. naquele dia, o dia de todos os dias, a história do que fomos fará finalmente sentido em cima de mesinhas de cabeceira ou em tertúlias de café amargo num estabelecimento qualquer, os nossos olhos estarão nesse dia tão abertos que nos será possível ver com precisão a borra de café no fundo da chávena e tudo nesse dia nos parecerá sossegado, sossegado como a paz que ambos merecemos. haverá um dia que resumirá todas as manhãs de acordares tardios, todas as tardes de pernas cruzadas, todas as noites de olhares no tecto, e nesse dia não se quedará a vida que tivemos. um dia morremos os dois, adormecidos como muros de betão armado, tão juntos que não será possível distinguir o quê de quem e o tempo acompanhará a procissão, triste como o rosto de um malfadado destino escrito pelas mãos de um deus qualquer. e o dia, que há-de ser de caras escondidas em véus negros ou lenços de papel, se abrirá em ruas de cidades perdidas que nos conheceram em gestos de gratidão e todos, os que entre nós foram, se abraçarão teimando um qualquer retorno. talvez no dia se tardem os sinos a tocar a rebate, talvez ou talvez não. no dia as nossas mãos estarão dadas como sempre estiveram e haverão duas marcas de aliança no dedo anelar dos corpos. o dia chegará ao fim com os relógios parados pela ignorância de muitos, tantos, os quantos que a vida que tivemos nos mostrou. ainda assim será meia noite em quase zero horas do relógio deles mas nós já não teremos o tempo de dormir ou de acordar. um dia morremos os dois, digo eu.
. façam de conta que eu não estive cá .