Contos : 

última cartada\escolha 1 dos 2 finais

 
nota: também o josetorres tem um conto com este título, embora com contornos completamente diferentes. escrevi-o há uns bons pares de meses e só hoje resolvi vos mostrar.



A corrente leva mas não traz. Não foi minha avó que disse, eu também sei fazer as minhas contas e, numa frase curta dar o meu testemunho.

O senhor Tino rocha se transforma, vira outro. Não!, ele nem é mágico nem transformista, ele é jogador. Mas não desses jogadores que vestem camisola e calção para entrar em campo.

Ele tem a sua própria roupa, o seu jeito pobre de vestir, o mau cheiro que o identifica logo quando entra no café para mais uma partidinha. Só esta. É sempre a última que nunca acaba.
Se para acabar com o vício fosse preciso remédio, o senhor Tino rocha era um remediólico.

Quer sempre ganhar mas o destino ou lá o que é, põe-no sempre a perder. Depois, é sua mulher quem paga as suas fracas jogadas. Bate nela como quem quer educar um porco, resmunga mais que resmunga, cospe na cara da sua pobre mulher e manda-a dormir junto dos animais.

Ele aposta tudo ou quase tudo. Um dia, soprou-lhe uma fé que ia ganhar a base, apostou um vitelo, que custou muito a alimentá-lo e, no seguimento da regra, perdeu. Como se não bastasse, insistiu em continuar a perder e ficou sem a mula. A sua mulher se abrisse a boca para chamar a atenção do que estava mal, sobrava-lhe dois punhos fechados entre os olhos e, chorava, caía insegura num canto até o sol bater novamente lá.
Os amigos dele diziam para ele ir com calma, que não vale a pena arriscar muito, os dias não acabam entretanto, além de que, o futuro não está fácil.

Ele, por sua vez, contrariando tudo e todos, insistia em não desocupar o lugar da mesa onde alegrias acontecem, mas, são mais as tristezas que se sobressaem.
Certa vez, entrou decidido que esta, pela milionésima vez, seria a sua última noite de cartadas e, avisou logo a malta que assim era.
E eles, conhecendo bem a cantiga, lá encolheram os ombros num pronto, lá terá de ser. As coisas não começaram mal e, o senhor Tino rocha, entrou a ganhar, recuperando algum dinheiro perdido na noite anterior.

Daí até ao entusiasmo foi um disparo. Mergulhado na emoção de estar a vencer, o cigarro ininterruptamente aceso, metido num canto da boca, a cervejola como boa companhia, as cartas a sairem tal como ele queria. Palavras para quê. Jogar é o que estava na mira.
Começou a arriscar mais um bocado, mais um bocadinho, a ser um pouco guloso e, sem que nada fizesse anunciar, tal a chuva que o meteorologista não anunciou, de repente tudo mudou e, o senhor Tino ficou sem as fichas todas de jogar, sem hipótese de recuar.

Havia de ter ido com mais calma, disseram-lhe. O problema é que ele queria-se manter no jogo, embora sem fichas para apostar, e então, a solução que o senhor Tino rocha magicou foi: em apostar a sua mulher.
Já que, apostar todos os bens da casa, essa já não pegava. Qualquer dia tinha de trazer o frigorifico às costas e isso eles tinham avisado que não queriam. Claro que a malta riu-se. No cimena sabem que estas coisas existem, mas agora aqui, nesta terrinha de meia dúzia, apostar uma mulher! Os adversários falaram baixinho e, ao fim de escassos segundos, decidiram que sim.

Ele podia pôr a sua mulher como aposta desde que ele respeitasse o adversário que a levasse, ou não, conforme o vencedor. De novo um sorriso na boca torta do senhor Tino rocha, os pêlos amarelados do bigode afiados outra vez. Os adversários lamberam discretamente a beiça. Afinal de contas a mulher do senhor Tino rocha tem uma idade mas ainda não perdeu os traços todos. Baralharam as cartas antes de as distribuir, cada movimento era analiticamente interpretado, a desconfiança apoderou-se da mesa redonda, silêncio absoluto para os que estão a assitir e, se acaso disso, uma faca ou canivete pode aparecer de repente e furar um pescoço.

Portanto, o silêncio é o mais que exigido. Pressente-se um nervoso subindo a copa dos corpos, as mãos tentam mostrar confiança, batendo com os cotos na mesa como sinal disso mesmo. Joga-se agora com instinto de predador, atacar apenas e só no momento mais preciso. Cirúrgicas jogadas. Nada de bluffs. Nada de orgulhos em cima da mesa. Qualquer hesitação vira o barco e cai marujo ao mar. Nada está decidido, a qualquer momento pode a sina destronar o destino.

A mulher do senhor Tino rocha, que de desgraças conhece muito, nada sabe, no entanto, que o sujo entranhado na alma é difícil de sair, muito menos que, poderá ter de pagar com seu sexo, as mãos de outros poisando nela, num aproveitamento imoral, as estúpidas apostas do seu Tino rocha.

A última cartada está prestes a ser revelada, dentro de segundos, mas que dentro do corpo é considerado uma eternidade, dá tempo para que uma semente se torne árvore troncuda; o derrotado terá a vida encostada à morte, por assim dizer. Os adversários deitam as cartas na mesa em gesto defensivo.
É a vez de Tino rocha fazer o mesmo. Sem que ele deite a carta na mesa, um choro repentino faz adivinhar que Tino rocha perdeu e que, a sua pobre mulher, será a tal chamada oferta da casa. De fúria levantada, ergueu a mesa no ar e fez um chiqueiro no chão, envolvendo-se por inteiro nessa matéria pestilenta, tomando o seu ranho como retoma da sua miséria.

Os adversários tinham avisado que não perdoariam se as cartas estivessem contra ele. A sua mulher, se acaso vencessem, iria ser despida com os dentes e, a sua religiosidade pura e simplesmente, iria com o caraças.
Ainda a noite tinha muito escuro para dar, os cães emitem latidos em anunciação de algo errado, os homens caminham em direcção à casa do perdedor afim de receber o prémio da aposta.

Tino rocha nada dizia, convertido num silêncio que só a uma morte se equipara. Chegaram na casa dele. A luz de dentro do quarto estava ligada. Sua mulher esperava-o na cama para aquecer os fracos ossos e quem sabe, alisar-lhe os cabelos que há muito se esqueceram das mãos do seu dono. Tino rocha mandou-os entrar.
Eles obedeceram e entraram um por um. Eram três. Três violações autorizadas. Tino rocha foi dar uma volta pelo curral, aproveitou e deu milho aos pintos.
Ele sabia que era o fim, que o nunca mais agora era a valer, mas, o que ele não sabia, era que os vencedores tinham combinado em não fazer nada à pobre criatura da mulher que nenhuma culpa tem em ter casado com um miserável, moribundo, daqueles.

mas, em vez do trato, entraram em casa dela para lhe encher a cabeça e ter cuidado que, o senhor Tino rocha anda por aí a pôr o corpo dela na mesa para usufruto dos apostadores, que qualquer dia entram uns mal intencionados pela casa dentro e depois é que há o diacho e não há tempo para misericórdias.

A pobre e desesperada mulher, ficou atarantada, queria agradecer mas tinha uma pedra no peito. Ou talvez duas. Entretanto, lá fora, Tino rocha contava estrelas e perdia-se na contagem, contava e descontava, uma negra luz subia-lhe à cabeça e fazia doer, agitava a cabeça como que se a quisesse desparafusar, um ciúme louco tomava conta dos seus pensamentos, um ódio de matar, um tudo ou nada pela honra e, assim que os homens saíram da casa, aliviados da consciência, pelo bem praticado, Tino rocha, num gesto único de loucura, enfia uma sacholada na mulher, e ela, sem tempo para chorar, para dizer que no fundo, eu amo-te, caiu como quando um prato cai no chão: desfeita em pedaços.

Juntou o corpo dela e deitou-o na cama, morta, sem mostrar aquele olho que reluzia quando os dois ficavam virados um para o outro na cama. Senhor Tino rocha deitou-se ao lado dela, por cima dos cobertores, a esfriar mais rápido do que ela, puxou do último cigarro que tinha no maço e acendeu-o, meteu-o na boca e iniciou uma série de fumaradas. O quarto ficou envolvido numa nuvem prateada mas, mal cheirosa.

Ele, começou por se aquecer, beijando a face da defunta, transferindo hálitos, depois, deitou-se por cima dela e começou a baloiçar, a baloiçar. Depois do cansaço, veio o sono, e a noite, que ainda era, manteve o seu negro véu por mais umas horas. Na manhã seguinte, alguém andava pelo quintal a recolher achas para a lareira, assobiando, feliz da vida.

O homem acordou e, deu um berro prolongado, pegou em suas mãos e lavou a cara sem água, freneticamente. A mulher não estava na cama. Coisas de bruxaria ou lá o que será, a mulher abriu a porta e correu para o quarto, perguntando «que foi, que foi que aconteceu».

O senhor Tino rocha, além de parvo, ficou taralhoco por a mulher estar ali, viva, sem rasgo na cabeça, fazendo uso ao seu avental e, como se nada tivesse acontecido, como se a noite tornasse os pesadelos em sonho, ela disse-lhe:
- Como é, sempre vamos ao rio buscar a lenha que está faltando?

Sem responder, o homem levantou-se da cama e, como se tinha deitado vestido, puseram-se logo a andar em direcção ao rio. A mulher ia na frente, o senhor Tino rocha ia atrás interrogando-se como é que o impossível acontece.
Ela ali com saúde, sem saber de nada, sustentando o peso da sua velhice com muita alegria, os seus cabelos a tornarem-se louros outra vez.
E ele: um balão a perder ar. Chegaram ao rio. Era preciso cuidado para não escorregar, caso contrário, o rio não dá segunda oportunidade.

Então, o senhor Tino rocha se ofereceu, como era costume, para apanhar os toros que estão perto da falésia e, como Deus não castiga mas também não dorme, quando o homem estava a escassos centímetros do precipício, um vento surgiu por detrás numa assentada, fazendo com que o senhor Tino rocha perdesse o equilíbrio e, com alguma sorte, note-se, ficasse preso num ramo que nasceu na encosta, a cerca de dois metros do sítio onde se encontrava. Aí, ele gritou:
- manda-me uma corda, mulher, manda-me uma corda!
A mulher, que tinha uma corda consigo para todos os efeitos, pegou nela e disse-lhe:
- Queres a corda?
Ele respondeu: - manda, peço-te por tudo! Por tudo!

Final I

Com a corda toda enrolada na mão, a pobre mulher, olha o desfiladeiro, repara bem no céu, pensa no futuro agora e, após breve diálogo interior, lança a corda, ele apanha a corda, segura-se bem e, a mulher, torna a olhar o desfiladeiro, dá uma olhada no céu que lhe parece da cor do sangue e, como se um touro acordasse de repente dentro do corpo dela, puxa a corda com a força de dez homens.

O senhor Tino rocha começa a subir de encontro à vida. Depois de respirar fundo, conseguesse levantar e abraça a mulher como só no dia da boda a abraçou. O céu avermelhando-se cada vez mais, o desfiladeiro dentro do olho da mulher, o rio mais parece um mar de cães esfomeados e, num tributo de amor platónico, a mulher sai de si, abraça o senhor Tino rocha com a mesma força que o fez salvar do perigo e, atira-se ao rio, amarradíssima ao marido, num sacrilégio único. Durante a queda beijaram-se, tocando os lábios toscos, prometeu uma jura: eu amo-te. E ele, concordou pela primeira vez.

Final II

Com a corda toda enrolada na mão, a pobre mulher, olha o desfiladeiro, repara bem no céu, pensa no futuro agora e, após breve diálogo interior, lança a corda toda, sem ficar com uma ponta a segurar e, fácil conclusão: a corda caiu lá em baixo no rio, atirada como se fosse uma serpente venenosa. O senhor Tino rocha, quis um perdão mas não obteve, achava aquilo já um castigo.

Mas não, a mulher, que mal sabia contar até dez, que a alegria vinha-lhe às gotinhas, foi-se embora, assobiando, indo amassar o pão que tinha deixado por fazer, até que alguém venha dizer, «encontraram-no quatro rios abaixo, tinha um buraco no peito, coitado o jogo deu cabo dele, o vinho deu cabo dele, apostou que ia ganhar e olha, perdeu». E, agora sim, como a minha avó dizia, morrendo o bicho, acaba-se a peçonha.

Passados nove meses, a mulher, por “milagre delinquente”, pariu um menino, tinha o coração sempre a rolar, cresceu, cresceu e, um dia quis saber quem fora o seu pai e, a mãe disse-lhe, «vai ter com Deus, meu menino, vai ter com Deus que ele sabe melhor que ninguém».
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
ângelaLugo
Publicado: 05/09/2008 00:54  Atualizado: 05/09/2008 00:54
Colaborador
Usuário desde: 04/09/2006
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Mensagens: 14852
 Re: última cartada\escolha 1 dos 2 finais
Olá poeta Flávio

Um conto excelente, bem contada a história
Quanto aos finais não consegui escolher porque:
Não se paga com a mesma moeda o que nos fazem
de mal e também não da para viver com alguém
assim, feliz para sempre depois que tudo aconteceu
Achei bem bacana cada parágrafo o vício do jogo
assim como tantas outras coisas desunem muitas
famílias e quem aposta acaba por ser o premio...
Parabéns

Beijinhos no coração