Em passo cadente silencioso, pela berma do caminho, caminhavam os dois, o pai com os olhos postos no chão, como que tentando encontrar algo ia observando a terra escura, com pequenas lascas de xisto aqui e ali tentando não os pisar que eram como lâminas nos pés descalços e doridos de mais uma jorna de trabalho. Lembrava-se de ter feito aquele mesmo caminho com o pai com a idade do filho que levava pela mão falar com o pai do Luisinho, agora Sr. Luís Almeida para pedir o mesmo que ele ia agora pedir. O Artur, seu filho não podia mais ir á escola, estava em idade de trabalhar que a Maria José estava já prenha de novo e era já o terceiro a caminho – como caralho é que ela se foi esquecer das contas? - Cogitava com os botões. – Òh home, foi deus que quis, que queres que faça? – Respondera-lhe a Maria José. Raios parta o Sôr Abade que lhes mete aquelas ideias na cabeça, que é pecado isto, é pecado aquilo… - Estugou o passo e disse ao rapaz – anda lá moço, não tarda nada é de noite e ainda temos que dar de comer á bicharada na volta -. O Artur apressou o passo na cadência imposta pelo pai, olhos postos no horizonte cujas ondas de calor enovelavam e o levavam a pensar que quando fosse grande iria ter um carro quando fosse preciso ir a casa do patrão, ou melhor nem ia precisar de ir a casa do patrão porque não ia precisar de trabalhar para ele como todos os da aldeia. Ia ter dinheiro para o carro, para os dentes do pai, para tratar aquela doença que a mãe anda a esconder do pai – dizes ao teu pai levas uma estalada que te parto os dentes – dissera-lhe a Maria José enquanto escarrava no lenço uma viscose de cor vermelha e o metia apressadamente na manga da camisa, a tuberculose é maleita do diabo, dizia-se. O Sôr Abade do alto do seu púlpito dizia que era uma doença enviada por deus para castigar aqueles que pecavam e cometiam o pecado da carne em desrespeito pelas indicações que o Santo Padre dava. E a Maria José não percebia, nunca tinha deixado o seu António usar aquelas modernices que se vendem nas farmácias da cidade, fizera sempre o k o Sôr Abade mandava e como é que Deus lhe mandara aquilo? O Artur corria agora atrás de um esquilo indiferente ás lâminas de xisto que lhe feriam os pés – Tu vais cair rapaz, aleijas-te e o Sr. Luís não te dá emprego, caralho… - Disse-lhe o pai.
A casa apareceu de repente ao fim da curva do caminho, contornaram o alvo muro até encontrarem o portão onde desembocava a estrada de paralelo que vinha do centro da aldeia sempre desenhada por carvalhos frondosos que o Avô do Sr. Almeida já mandara plantar há quase 90 anos, para o proteger da canícula do verão nas suas idas e vindas de charrete. Mas agora haviam os automóveis e o do Sr. Almeida lá estava do outro lado do portão com o motorista a passar-lhe um pano.
– Que queres daqui Tónio? Perguntou-lhe o motorista garboso no seu uniforme.
– Vinha para falar com o Sr. Luís Almeida por causa aqui do moço, sabe como é, já ‘tá em idade…
- Òh Idalina…vê se o Senhor pode atender aqui o Tónio da Zefa. Berrou o motorista para uma sopeira que passava apressadamente para o interior da casa com um cesto de roupa acabado de apanhar do varal.
O Senhor assomou á entrada da casa, barriga proeminente, com as mãos nos suspensórios, um palito no canto da boca, um bigode farfalhudo com fios de bacalhau pendurados, lábios semi cerrados para dar a demonstrar que não gostava que lhe interrompessem a merenda, e logo agora que a punheta de bacalhau lhe estava a saber tão bem.
– Que queres Tóino? O António tirou apressadamente o chapéu, olhou de soslaio para o Artur e deu-lhe um tabefe no cachaço que se apressou a fazer o mesmo
- Era pa falar aqui do meu moço, Sr. Luís, o rapaz fez a terceira classe, e já vai sendo tempo de começar a trabalhar que eu cá também não aprendi a escrever e cá vou levando a vida. Ele é inteligente o moço, se calhar até nos escritórios da fábrica grande lhe podia fazer jeito.
- Òh Tóino, de inteligentes aqui na terra já basto eu, ele que idade tem?
- Desculpe Sr. Luís, não quis ofender o senhor, mas não se podia arranjar alguma coisita para ele? È que a minha Zefa, já, já t’aí a parir e dava jeito mais algum lá em casa. Só pa parteira o Sr Luís sabe como é…
- Vós fodeis como coelhos, não tendes juízo é o que é – vociferou o Senhor – Chega cá moço, mete aqui as mãos entre as grades pa te ver. O Artur olhou para o pai que lhe fez um sinal de assentimento, chegou-se às grades do portão, e mostrou as mãos ao Senhor.
- Amanhã, às seis da manhã levas o moço ao chefe de turno da fábrica e dizes que vais de meu mando, mas olha lá, o moço vai ter que fazer os dois turnos qu’é muito novo e não dá rendimento…Respondeu e virou costas ignorando os “obrigados” do António e os “Deus lhe pague”.
O António fez o caminho de volta, lentamente, cara tisnada pelos fornos da fábrica de tijolos, pegou na mão de Artur, pequenina e franzina no meio da sua grossa e calejada, lembrou-se de quando na idade dele fazia o trabalho de cinzeiro na recolha do carvão k não ardia e era reutilizado para os fornos… O calor sufocante, o carvão incandescente que teimava em se colar ás maos, a chibata do chefe de turno…- Puta de vida.