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Mar, doce mar...

 
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Mar, doce mar...
 


Sentou-se na areia branca e fina daquela praia deserta...

Era cedo, muito cedo, e apenas algumas gaivotas quebravam, em voo largo e tranquilo, a quietude do mar… o mar, sua infinita e eterna paixão, a segredar-lhe paz em murmúrios de silêncio… o seu mar… a ele contava suas angústias na aflição do desespero que lhe assolava a alma quando o castelo da sua vida parecia ruir… a ele revelava suas falhas e limitações no reconhecimento de erros cometidos por ignorância ou fraqueza……a ele gritava suas dores, aquelas que cortavam fundo todos os sonhos que acalentava, as que sufocavam esperança e fé, as que esmagavam vida em si e desmoronavam todos os sentires de que era feita… sabia que a compreendia, talvez só ele a compreendesse… com ele festejava cada alegria vivida, cada vitória conseguida nas duras lutas de uma vida tantas vezes adversa… com ele partilhava cada instante do seu ser, do seu sentir, do seu estar entre gentes que lhe eram estranhas num mundo cada vez mais inóspito… sim, só ele a compreendia… e só ele, em seus silêncios e seus sons, esclareceria as mil dúvidas que a vestiam de desânimo naquele instante em que um olhar opaco de esperança se perdia na imensidão das suas águas…

E ali, sentada, de mão dada com a espuma branca e suave que o seu mar lhe estendia, abriu o livro das memórias que guardava no coração… umas felizes, outras não… nele estavam escritas, uma por uma, a sangue e vida, todas as lembranças de si…

Menina fora, em tempos mais humanos do que os que hoje se viviam, mas ainda assim com o seu quê de não humanos… Fruto de amor, talvez… ou talvez não… filha indesejada de uma união sem papel, bastarda como lhe chamou um dia aquela mesma que a gerou, sem que lhe explicasse o significado de tal palavra… menina-mulher num ápice de infância roubada entre deveres e obrigações demasiado pesados para tão pouca idade… adulta à força em prol de conceitos antiquados gritados em tons de histeria maternal a tentar incutir nela absurdos padrões de cega e servil obediência… questionar ou rebelar-se de nada adiantava como provavam as marcas dessa luta inglória gravadas a pontos cirúrgicos no seu corpo…

Havia, porém, alguém que equilibrava aquele estado de coisas, mas qual fiel de uma balança em absoluto desequilíbrio, balanceava, ele próprio, na ignorância dos acontecimentos. Nem sempre presente por exigências do ofício, escapava-se-lhe muito do que sob o seu tecto ocorria… e ela poupava-o, não o queria preocupado, pelo menos ele estaria a salvo daquele inferno… Ele era tão calmo, tão bom… era dele que recolhia os ensinamentos mais puros e importantes, bem diferentes dos que aquela outra lhe ministrava entre gestos e palavras violentos… opostos até... nunca compreendeu o que unia aqueles dois e dava por si a desejar que se separassem e que ele a levasse dali para fora… mas ele nunca o fez… e ela continuou a penar sem alternativa que a salvasse daquele inferno em vida… chegou a odiá-lo por isso…

Mas ele redimiu-se ensinando-lhe a importância da verdade, da vontade e determinação, da liberdade de ser e estar e de deixar ser e estar os demais, mostrando-lhe que além portas havia um mundo por descobrir, pleno de luz, vibrante de cores e sons… e ela queria, ah como queria, desvendar esse outro mundo...

Um dia aconteceu o primeiro amor, aquele que é tido como inesquecível e mais importante na vida de um ser humano… foi de facto inesquecível, mas não por felizes motivos e nos três anos seguintes não houve quem conseguisse penetrar o sólido e espesso muro de que se rodeou… passava o tempo entre as aulas, os livros que devorava com uma fome imensa de aprender, de compreender tudo o que a rodeava, e as obrigações domésticas que lhe eram impostas a pretexto de a preparar para o inevitável casamento… sim, que mulher que se prezasse haveria de casar e tinha que saber fazer de tudo muito, que pouco não bastaria para prover ao bem estar do marido e se não queria que ele se amancebasse com outra melhor seria que soubesse cozinhar-lhe as refeições e costurar-lhe as peúgas a preceito… crenças arcaicas que jamais confirmaria em toda a sua vivência, mas naqueles tempos a palavra materna era lei num feudo onde se sentia plebe da mais mísera e escravizada sem amparo que lhe valesse, que o outro plebeu idênticos tormentos padecia, embora tentasse disfarçar… sempre ouvira dizer que ‘três é a conta que Deus fez’, mas então e ali o três mais parecia obra do demo…

E assim se sucediam dias e noites, noites e dias naquela vida sombria…isolada num mundo que
criara somente para si mesma, acalentava a secreta esperança de que no dia em que fosse adulta tudo mudaria sem se aperceber de que era já adulta, se não em idade, na maturidade a que fora precocemente forçada… foi por essa altura que começou a observar mais atentamente as gentes ao seu redor… tentava captar-lhes a alma na expressão do rosto, tarefa nada fácil porquanto já então as pessoas haviam aprendido a dissimular gestos, a desviar o olhar das palavras que lhes caíam dos lábios… o actual ‘politicamente correcto’ em embrião, talvez…

Era tida, pelos estranhos, por rapariga sossegada, bem educada, de boa convivência… sorriam-lhe frequentemente, procuravam a sua companhia, mas ainda assim não deixava que entrassem no seu mundo… até que em certo momento se distraiu e alguém conseguiu abrir uma brecha no sólido e espesso muro de que se rodeara… um alguém que soube ver para além do óbvio… um alguém que, paulatinamente, conquistou o seu coração e a levou onde nunca sonhara ir porque não queria o altar por destino… os seus sonhos eram diferentes dos das raparigas da sua idade, iam muito além do socialmente exigido e aceite… sonhava ter filhos, sim, e esse talvez fosse o único ponto comum com sonhos de outras moças da sua idade, nunca sonhara, contudo, ver-se noiva jurando promessas de amor eterno a um comum mortal perante outro comum mortal auto intitulado representante de Deus na Terra… aliás, nem religião professava desde que uma certa professora de ‘moral’, munida de caneta e bloco-notas, tentara levar os alunos, ela incluída, a revelar as preferências políticas de pais e familiares… questionara a dita professora sobre se aquela disciplina era de ‘religião e moral’ ou ‘política’, o que lhe valeu uma falta por mau comportamento… estava-se então no rescaldo de um certo dia 25 de Abril e viviam-se tempos confusos com os ânimos da população a saltitar entre a exaltação à liberdade e o ódio a tudo o que pudesse parecer ‘fascismo’… ficara, por conseguinte, avessa a religiões…

Mas aquele alguém que a nada a forçava conseguiu, com muito amor, conduzi-la ao caminho que nunca traçara no seu horizonte e os anos que se seguiram foram dos mais felizes de que se lembrava… Mais do que marido e amante, ele era o melhor amigo que alguma vez tivera a sorte de ter…

Não há, porém, bela sem senão e aquela paz celestial acabou por diluir-se na estranheza que,de súbito e sem se dar conta, a possuiu… sentia-se esmagada entre as paredes de um casamento que quisera mas não sonhara… sentia o peso imenso da culpa por já não conseguir corresponder a tanto amor que ele lhe oferecia… sufocava, amarrada por nós invisíveis que não conseguia desatar… definhava, encurralada entre consciência de que não conseguiria continuar ali e o remorso antecipado pela dor imensa que iria causar-lhe a ele, fosse qual fosse o passo que desse a seguir… ficar ou partir teria a mesma nefasta consequência, iria arrasá-lo de qualquer modo… concluiu por fim que melhor seria partir, assim ele teria oportunidade de ser feliz com outra que não ela, incapaz já de outro sentir que não fosse o de voar para bem longe de si mesma… curiosamente, anos mais tarde foi ele quem ele traduziu de modo exacto esse sentir que então a atormentava: ‘Tu precisavas de asas… e eu não tinha como tas dar…’ Vidas separadas e vinte anos passados, continua a ser o melhor amigo que algum dia lhe coube em sorte…

Algum tempo depois veio a conhecer aquele que viria a ser o pai do seu filho… Um relacionamento algo conturbado porquanto também ele queria levá-la ao caminho do altar, enquanto ela nem dignava sequer equacionar a hipótese cortando-lhe todas as vazas de planos e projectos na matéria, até que ele se convenceu de que não conseguiria vencê-la nem convencê-la a casar… O filho, inesperado e não planeado, foi muito bem recebido por ambos e a felicidade que sentiam ultrapassou toda e qualquer expectativa que imaginar pudessem… Mas…

‘O que Deus dá, Deus tira’ diz-se… e Deus o levou do mesmo inesperado modo como o havia trazido… Se a dor matasse, teria ela morrido naquele instante… conheceu, então, a mãe todas as dores, a dor maior, a mais intensa que mulher alguma pode sentir em dias de sua vida, em noites de sua morte… nos dois anos seguintes deambulou no limiar da loucura, alheia ao mundo, distante da realidade… cumpria mecanicamente as funções vitais à sobrevivência física mas a alma… a alma perdera-se enclausurada naquela dor imensurável…

Dele pouco mais soube e mais não quis saber… haviam planeado uma viagem ao estrangeiro, esperando aquietar a dor que os consumia, porém ele desistiu e ela viajou sozinha… em malfadada hora o fez, que o que aconteceu nessa viagem arrasou com o ténue resquício de sanidade que nela ainda periclitava… contas de um rosário que não quis nem quer lembrar porquanto a morte se lhe mostrou no fio da navalha de um estranho em estranha terra, porém não para a levar, o que teria sido uma bênção, e sim para a atormentar mais ainda e afundá-la irremediavelmente no abismo insano em que caía já… Quem voltou dessa viagem foi outra que não ela…

Sucederam-se anos vividos dia após dia ao sabor de ventos e marés e o tempo foi atenuando todas as dores, até mesmo a dor maior… outras dores vieram mas não ficaram, que esta outra que voltara da tal viagem era mulher de força, determinada a seguir adiante, sabendo muito bem o que queria e melhor ainda o que não queria e não estava, por conseguinte, disposta a deixar-se ferir fosse por quem ou pelo que quer que fosse… com mais ou menos dores, haveria de seguir o seu caminho, firme, sem desvios… se tropeçasse e caísse, erguer-se-ia sempre, que se não morrera até ali, nada nem ninguém a derrubaria…

Romances eram de pouca dura, que assim que ouvia a palavra fatal desandava e não mais se deixava encontrar por eles… duas excepções houve, no entanto, sem pretensões a altar, mas com os condimentos ideais para azedar o cozinhado a breve trecho, tanto que ambos os relacionamentos terminaram de forma abrupta com ela a travar às outras partes qualquer ímpeto de retorno, que na sua vida história encerrada, encerrada estava e assim ficaria por todo o sempre.

Até que um dia… conheceu alguém que, sem motivo aparente, fez disparar sinais de alarme no mais recôndito da sua alma… porquê…?! Nunca soube, ainda hoje não sabia… O primeiro encontro foi simultaneamente o último, bem entendido, beneficiando ela da vantagem de ele não saber sobre si o suficiente para a encontrar, caso o tentasse… e eis como uma história a nascer não chega a ser encerrada… erro crasso que viria a pagar caro demais porque seis anos volvidos, o mesmo acaso que os fizera encontrar-se coloca-os, uma vez mais, frente a frente numa vida em que nada acontece por acaso e histórias com final feliz são raros e divinos milagres…

Nunca teria imaginado o que se seguiu, nem nas suas mais excêntricas fantasias… sem se dar conta, abriu todas as defesas e entregou-se inteira a um sentir indescritível que a levava além universo de todas as emoções… ele parecia sentir na mesma dimensão e entregava-se-lhe sem reservas… almas afins, complementares, gémeas, fosse lá o que fosse, não havia definição terrena para aquele sentir… nem a palavra fatal a abalou, pelo contrário, sentiu pela primeira vez que sim, era isso mesmo que queria, mas com ele e só com ele… ele mostrava-lhe o seu sonho e ela acolhia de peito aberto o sonho dele, fazia-o seu na imensidão daquele sentir infinito, maravilhoso, mágico… transcendente…

Mas… o ser humano é por demais complexo e… não tardou que nele notasse sinais de um medo
indecifrável e sem explicação aparente… tentou sondar-lhe a alma, sem sucesso, que ele não era de fáceis confidências e ela nunca se achara no direito de forçar respostas ou acções… o certo é que esse inusitado medo se avolumou nele a tal ponto que tudo começou a desmoronar… ou quase tudo, porque o sentimento parecia cada vez mais forte e inabalável… desconhecendo a raiz daquele medo que lhe travava a ele o passo num caminho que parecia claro e sereno e ante a incoerência entre as palavras e a acção, acabou ela por se desorientar na incompreensão do que acontecia… sentindo-se demasiado fragilizada, tentou afastar-se dele, mas ele desesperava e ela não queria causar-lhe mais sofrimento do que aquele que já sentia nele… até que num certo momento, ele a feriu tão profundamente que ela decidiu não continuar com ele e impôs-lhe a sua decisão… na despedida, ele abraçou-a fortemente dizendo entre lágrimas ‘Aconteça o que acontecer, lembra-te que tu és a minha vida.’

Estranhamente foi ele mesmo que pouco depois cortou contactos deixando apenas um, insuficiente para que pudesse sequer ajudá-lo enquanto amiga… tentou, ainda assim, mas sem sucesso, evidentemente… e através desse único canal de comunicação que deixara aberto, ele afirmava ser importante que ela estivesse por perto, mas mantinha-se, ele mesmo, distante, continuava a proclamar amor eterno e infinito, porém não o demonstrava, dizia ter esperança, mas desesperava… tanto e assim prolongou a ausência, a distância e o silêncio, que a levou a concluir que ele havia escolhido desistir do amor e arrastar a alma pelo chão da vida, absurdamente acomodado ao medo e ao sofrimento, incapaz de lutar pela sua própria felicidade e… ela desistiu dele, por fim… dele, sim, mas não do amor que sentia e que guardaria além vida em todos os tempos de si mesma…

Ficara-lhe, contudo, uma estranha e incómoda sensação: a de que, pela primeira vez na sua vida, não conseguira encerrar uma história… e se o tentara, ah como e quantas vezes tentara! Mas sabia que algures, num futuro talvez mais próximo do que imaginava, aquela história voltaria… para ser encerrada ou transformada…? Não queria saber…

‘Não adianta fugir, onde tiveres que ir, irás’, diz o povo… e a voz do povo é a voz de Deus…

O mar, o seu mar, murmurava docemente, como se concordasse com estas palavras…

Com um sorriso sereno a bailar-lhe no olhar, levantou-se devagar e caminhou mar adentro, em passo lento… aninhou-se no abraço de águas mansas e adormeceu, enfim, embalada pelo doce cântico dos silêncios do seu mar…



(Composição de imagens de autores desconhecidos com efeitos de editor [i]by Zita[/]...)
 
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LuaBandida
 
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