mãe. falar de ti é matar-me, matar-me devagar, deixar estalar a tinta das paredes, sujar o tapete, atirar contra o espaço a minha figura e, ainda assim, mãe, falar de ti é saborear a vida que tive como se ela me bastasse para ser feliz. quando te conheci o tempo era de cor castanha e de pés esticados já chegava à última prateleira do armário da cozinha, quando te conheci a tua barriga era redonda e as tuas pernas mal podiam com ela, quando te conheci os meus olhos tornaram-se chuva, não era assim que te imaginava mãe. não era assim que te via quando me sentava a escutar-te pela voz rouca de uma avó doente. chegaste com uma mala que era do tamanho da rua, a teu lado, calado, o pai, o pai e os seus olhos, irmãos gémeos dos meus, as mãos atrás das costas curvadas para um soalho que nunca conhecera. chegaste como quem regressa mas tu nunca quiseste regressar mãe, chegaste como se o Inverno chegasse em setembro, arrefeceu, arrefeceu nas paredes e no chão, no átrio esperavam alguns móveis velhos que em breve iriam morrer, é assim o destino de todas as coisas. ocupaste o quarto do fundo, a mobília foi deitada fora, desfeita em pedaços de madeira que ainda eram casa de muitas traças e eu sentada no muro observava da janela os teus gestos desconhecidos, uma mão segurava-te as costas e a outra ia arrumando isto e aquilo, aqui e ali, enquanto o pai te ajudava a pegar nas coisas mais pesadas. ao jantar esqueceste-te do meu nome e eu fiz de conta que não reparei, já tarde foste dormir e pude ouvir-te em palavras grandes e longas, segredos que já não o eram, o teu tom de voz azedo como a sopa que sobrara de ontem, o desejo de te ires embora, nunca quiseste regressar mãe.
*todos os direitos deste texto pertencem a Margarete da Silva.
. façam de conta que eu não estive cá .