Acordou com os joelhos frios, os pés quentes, a mão agarrada à coberta que teimosamente presa não aconchegava o pescoço.
Uma leve luz filtrada pelos cortinados e às bolinhas pelos furos da persiana semi-corrida, piscou-lhe nos olhos. Fechou-os de novo, suave, aquela sensação boa do lençol macio de anos de uso, a almofada feita ao jeito da face, tudo silencioso, o gato aninhado entre ela e o homem que dorme a seu lado.
Olhou para o relógio: 6,30 da manhã.
E fica-lhe aquele numero a martelar, como se de alguma coisa importante se tratasse, que 6,30 da manhã é tão só uma hora como outra qualquer e agora e aqui deitada está-se tão bem, tudo tão sereno, em paz consigo.
Já passam mais de 40 minutos desde que o despertador cumpriu a sua função, mas só nos outros dias, que hoje ela amordaçou-o ou deu-lhe ela o tempo para ser somente um marcador de numeros, não um avisador de levantar os outros da cama, onde se está tão bem, tão bem.
O homem solta um suspiro, quase um silvo, os dedos vêm para fora da dobra do lençol macio a coçarem a barba que cresce desde véspera. A mão forte puxa a coberta de esticão e ela ficou agora mais destapada, os joelhos mais descobertos, o gato cravou as unhas para manter o seu território fofo e quente entre o homem e a mulher.
Ela quer voltar a adormecer mas o corpo não deixa, demasiado viciado na preocupação do levantar ao toque do zunido do despertador, anos demais a erguer-se porque tem de ser, é a vida...Ficar assim, a saborear este pequeno fruto, verde pela novidade e cobiçado porque só desejado, faz da simplicidade o gosto pela descoberta do tesouro.
A mão toca o ombro do homem, de costas para si: ela quer saber o que ele está a sentir, se igual a ela, tocá-lo e achar que o calor do corpo dele provém desta serenidade, talvez quem sabe, enroscar-se nele, deixar-se beijar, de novo adormecer, de novo acordar, repetidamente achar-se unica no mundo confinado àquele quarto de luz filtrada.
O homem dorme.
Ela recolhe a mão e abraça os joelhos frios junto ao peito.
Pensa que a felicidade é momento solitário.
O hábito obriga-a a olhar o relógio: se se tivesse levantado, onde estaría agora? Ouve no silêncio do quarto a buzina dos carros, a conversa dos anónimos. Abre os olhos. Não ouve nada, talvez um som fundo, difuso, o ronronar do gato, o ressono marulhado do homem.
Hoje a mulher não se levanta nem corre.
Ficou ali a ouvir-se, a sentir a claridade às bolinhas no recorte do ombro do homem que tem a barba a crescer, agarrada às pernas presas para que estas não lhe fujam ao comando e num impulso, agarrar o telefone e ofegante dizer "estou atrasada, já vou a caminho".