As últimas aparições de Dorival Caymmi em shows foram todas ao lado dos filhos. Pela ordem cronológica: Nana, Dori e Danilo - os dois primeiros gênios incontestes; o terceiro, nem tanto, mas nem por isso deixou de ter o seu nome, como co-autor, imortalizado em clássicos da música popular brasileira, como Andança e Casaco Marrom.
Em fins de 1980, no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de assistir a um desses espetáculos da família Caymmi. Quero confessar que, talvez pela pouca sensibilidade musical, nunca fui fã de carteirinha do velho Dorival. Isto não significa, porém, que não o admirasse. Pelo contrário, é autor de verdadeiras maravilhas do nosso cancioneiro popular. Mas se gosto de Marina, Suíte dos Pescadores, João Valentão e Das Rosas..., que eu cantava quando criança, não tenho a menor simpatia, por exemplo, por O que é que a Baiana tem. Nunca me interessei em saber o que a baiana tem ou deixa de ter. Até porque sempre detestei Carmem Miranda, a falsa baiana, que nunca cantou coisíssima alguma, mas que soube vender - e muito bem - o seu mal temperado peixe aos norte-americanos, desprezando o Brasil. Digo o mesmo do chatíssimo João Gilberto, para mim mais um gênero do que um gênio, incensado como um verdadeiro deus por compositores, cantores, mais jornalistas e pesquisadores, estas duas últimas categorias que, com raras exceções, não conhecem uma só nota de música, mas adoram fazer média. Enquanto isso, nomes como Jhonny Alf e Alaíde Costa vivem praticamente no limbo.
Eu não deveria estar escrevendo estas linhas. Caymmi está morto.Sua figura foi e será amada por todos os brasileiros. Eu mesmo gostaria de tê-lo como pai ou avô. Ele, sim, era doce, ao contrário de morrer no mar, que deve ser terrível.Caymmi pode não ter sido um grande poeta, como dizem. Poeta, para mim, é poeta de livro. No entanto, meus amigos, Caymmi viveu como um poeta. E viver como um poeta é mais importante do que fazer versos ou publicar livros. Sua obra, em cinqüenta anos de atividade, resume-se a pouco mais de cem canções. Claro, quantidade não é qualidade. Se assim fosse, Coelho Netto e Chico Xavier seriam os maiores escritores do Brasil.
Das minhas canções preferidas legadas por Caymmi, não mencionei acima, de propósito, a que mais gosto: Acalanto, composta para a filha Nana. Até hoje, quando a escuto, vou às lágrimas. Com fama de temperamental e antipática, o que não é verdade, Nana transfigura-se ao interpretar a canção em sua homenagem. E parece que agora, enquanto meus dedos batucam no teclado do computador, estou me vendo naquela poltrona do teatro, olhando para o palco, ouvindo a família Caymmi cantar para mim. Nana está de vestido largo, para esconder o excesso de peso. Dori,compositor e arranjador internacional, toca o seu violão. Danilo sola na flauta. Dorival, todo de branco e de sandálias, com a voz inconfundível, começa: "É tão tarde, a manhã já vem.../Todos dormem, a noite também./Só eu velo por você, meu bem..." Nana volta ser menina. Dorival está sentado. Ela repousa a cabeça no colo do pai. E aí,sim, é ela quem canta. Quando termina, os refletores apontam na direção do seu rosto inundado de lágrimas. As mesmas lágrimas que todos nós brasileiros choramos agora. Por você, Dorival. Dorme, anjo...
Júlio Saraiva