A chuva deixara de cair e ainda que tímido, o sol cobria de ouro toda a cidade. Refulgia nas vidraças dos prédios, alumiava o escuro dos becos e emprestava poesia ao rosto acinzentado do homem das castanhas.
Fumegantes pelo calor do assador, estas, adoçavam a aragem cortante da manhã e aqueciam a alma, com um certo encantamento.
Um pouco por todo o lado se adivinhava o Natal. Eram as magníficas decorações nas ruas e nos centros comerciais, o enorme pinheiro enfeitado de luzes no largo e o vaivém anónimo das pessoas carregadas de embrulhos coloridos.
Os sorrisos tornavam-se mais abertos, mais espontâneos, como se uma alegria pueril habitasse o coração dos homens.
No jardim da praça, onde há muito, os plátanos haviam perdido as folhas amarelecidas pelo Outono, as crianças entretinham-se em brincadeiras barulhentas. E as suas vozes dispersavam-se pela urbe, em suaves entoações de infância.
Um menino, entre todos, despertou a minha atenção. Há quase uma semana, que àquela mesma hora, o encontrava absorto na contemplação da montra de uma loja, que existia frente ao jardim.
Era um edifício antigo, com a tinta a descascar nas paredes e uma discreta montra de vidros algo empoeirados. Ofuscada pela cintilação apelativa das outras lojas, era fácil, esta passar despercebida.
E no meio da minha pressa diária, decidi eu própria parar o tempo e quedar-me a observar o que os olhos do menino viam, naquele rectângulo envidraçado.
Surpreendeu-me não ver jogos electrónicos ou brinquedos barulhentos, cheios de botões luminosos. Ali, encontravam-se apenas meros brinquedos de madeira. Coloridos é certo, mas de uma tal simplicidade, que se perdiam na exuberância envolvente.
O menino acercou-se da montra e o seu olhar sonhador, pousou num rudimentar comboio, pintado de vermelho e amarelo. Dir-se-ia um pequeno maquinista, a embarcar no comando das carruagens e a seguir viagem, rumo a um destino que só ele conhecia…
Aproximei-me silenciosamente.
― Gostas do comboio?
A criança sobressaltou-se, não sei se com a pergunta, se com a minha presença, limitando-se a assentir com um gesto.
― Como te chamas? ― indaguei.
― Nicolau…
― Olha Nicolau, posso saber porque gostas tanto desse brinquedo? Geralmente, os meninos da tua idade gostam mais de jogos de computador…
Ainda de face voltada para a montra, o menino respondeu com um ligeiro tremor na voz.
― Não tenho computador. Os meus pais não me podem comprar um. Eu não me importo. Preferia antes este comboio de madeira, mas não tenho coragem de pedir, sei que têm muitas despesas e o meu pai está desempregado…
Tentei balbuciar alguma coisa, foi porém Nicolau, quem continuou a falar.
― O meu avô também gostava de fazer brinquedos de madeira e um dia, pouco antes de morrer, ofereceu-me um comboio quase igual a este… ― murmurou, apontando a montra ― Através dele, o meu avô continuava comigo. Um dia, houve um incêndio na casa onde vivíamos e o comboio ardeu…
Senti um nó a apertar-me a garganta e empurrada por um instinto irreprimível, entrei na loja e comprei o brinquedo.
Quando saí, Nicolau seguia já rua abaixo, conformado com aquele pedacinho de sonho diário.
Corri no encalço dele e ofegante, chamei-o de volta. Olhou-me admirado. Sem mais rodeios, estendi o brinquedo na sua direcção.
Nenhum de nós pronunciou qualquer palavra, apenas os olhos dele mergulharam nos meus.
― Obrigado por me ajudar a manter o avô vivo dentro de mim... ― murmurou por fim.
Nesse instante, uma nuvem que há muito espreitava no céu, ocultou o sol e abriu-se num intenso aguaceiro.
Pelo meu rosto deslizaram gotas salgadas, não sei se nascidas nos meus olhos, se geradas no céu…
Texto escrito para o "Diário de Turma" - suplemento infantil do "Diário de Coimbra", no qual foi publicado em Dezembro de 2006.