Prosas Poéticas : 

ANATOMIA DE UMA DEPRESSÃO

 
Desde minhas lembranças mais remotas, eu já era propenso a inconstâncias de humor; oscilava entre os momentos de tristeza e a alegria. Na adolescência os períodos de melancolia se acentuaram; depois, quando adulto, passaram a pequenos e brandos ciclos depressivos. Supunha ser uma extensão de mim mesmo, ou seja, de meus entusiasmos, de minhas emoções intensas, de minhas leituras que envolviam sentimentos; até que numa manhã fria de julho, olho-me no espelho e não me conheço.

Vejo alguém vazio, mórbido, indiferente, entediante,
Alguém sem graça e sem vida.
Alguém estava naquele espelho. Mas esse alguém não era eu.

Minha mente era minha amiga. Estava acostumado a ter conversas intermináveis com ela. Tínhamos uma inesgotável fonte de riso e de pensamento analítico para nos salvar das situações entediantes e dolorosas. Agora, de repente, ela se voltava contra mim. Não considerava mais nada interessante, divertido ou digno de atenção. Meu raciocínio antes límpido ficou tortuoso. Eu lia o mesmo trecho de um livro repetidamente e percebia que não tinha nenhuma lembrança do que acabara de ler. A cada poema que lia ocorria o mesmo. Nada fazia sentido.
Passei a levar o dobro do tempo normal para caminhar até algum lugar. Não conseguia tomar sequer um banho. Andava até o banheiro contando cada passo e ficava, ali, olhando fixamente para o chuveiro; simplesmente não conseguia abri-lo. Minha noiva providenciou uma banqueta de alumínio e a colocou no box do banheiro; e assim, todos os dias, ela me banhava, enquanto minha mente vagava por um mundo desértico e árido.
Meu apetite sumiu. Sentia-me incapaz de comer qualquer coisa e odiava a necessidade de ter de engolir. Em cerca de um mês perdi mais de quinze quilos. Usava dias seguidos às mesmas roupas. Não as tirava nem para dormir; era uma tarefa muito difícil. Ficava sentado na cadeira de minha escrivaninha, no início da manhã e no final da tarde, praticamente inerte, com o coração morto e o cérebro vazio, não mais conseguia concentrar o raciocínio. Minhas idéias grandiosas de um mês atrás, pareciam, agora, absurdas e patéticas. O passado e o futuro foram absorvidos pelo momento presente. Não conseguia lembrar-me, claramente, de um tempo em que me sentia melhor, e, certamente, não conseguia imaginar um futuro em que estaria bem. Sentia o tempo todo, a necessidade de fazer alguma coisa, mas não conseguia; um desconforto para o qual não havia alívio não permitia. Sabia que algo estava terrivelmente errado comigo, mas não fazia idéia do que seria.

Como começou essa tristeza?
De que modo a adquiri?
De que matéria é feita?
Como acabará a minha vida?
Poderei encontrar meu caminho de volta?
Voltarei a minha escrivaninha, à cadeira e aos livros?


Todos os dias, acordava apavorado pelo que ia ter de enfrentar até que voltasse a dormir novamente. Toda a paz interior e exterior fora tirada de minha vida. Queria dormir até ficar bem.

Dorme-se e tudo morre. Morrem as aflições, morrem as dores.
Dormir era o fim dos males, era meu único asilo.


Quando nada mais fazia sentido em minha vida, ela chegou. Foi a primeira vez que vi a face da morte. Ela me seduziu. Dizia-me: Se tudo nasce para morrer, melhor morrer agora e evitar a dor que ainda está por vir. Na outra vida existe a possibilidade de se estar, se não feliz, ao menos em paz. Morrer também é dormir. Nada mais.

Estou perdendo o desejo e a vontade de viver.
Noite e dia desapareceram para mim.
Há dor...
Dor de dor...
Dor negra.
Das noites sem astros, das manhãs sem sol.


Devo viver assim toda a minha vida; dividindo, com esta angústia insuportável, meu dia e minha noite?
Que é melhor para minha alma: suportar as adversidades de um destino injusto ou opor-se a esta força impetuosa, dando-lhe
um fim?

Meus pensamentos estavam deformados e eu estava assustado e assustador. Idéias de suicídio ou morte freqüentemente acompanham a depressão.

Será que estou lentamente enlouquecendo?
Alguém pode me dizer o que aconteceu!
Nenhuma resposta!
Só ouço meus gritos mortos... Preciso de ajuda!

Muitas vezes, as pessoas não procuram tratamento para sua depressão porque a ignoram, porque não reconhecem os sintomas, porque têm dificuldade em pedir ajuda, porque se sentem culpadas, ou porque não sabem que existem tratamentos para a depressão.

Paciente com tendências suicidas intermitentes.
Paciente continua a apresentar sério risco suicida.
Paciente não aceita hospitalização porque tem pavor de ser trancafiado, não quer se afastar do ambiente familiar.
Desespero quanto ao futuro.
Paciente reluta em estar com pessoas porque acredita que sua depressão é um peso intolerável para os outros.
Com medo de sair do meu consultório.
Não dorme há dias.
Desesperado.
Sem esperanças.


Meu médico tentou repetidas vezes me convencer a internar-me num hospital psiquiátrico. Ele estava convencido que a eletroconvulsoterapia (ECT) era o único tratamento apropriado, no momento, para preservar minha vida. Recusei-me.
Eu não conseguia imaginar algo mais desumano. Tanto a internação quanto o tratamento. A idéia de ser trancafiado, de não ter acesso ao mundo exterior, de ficar afastado do ambiente familiar, de ter de freqüentar reuniões de terapia em grupo, de ter de suportar as invasões de privacidade, me apavoravam.

“ Eles possuem o terrível poder de lhe adormecer; e, durante o sono, roubam-lhe o pensamento, ou melhor, sua alma; esse santuário, recesso do Eu, lugar que julgamos impenetrável, refúgio dos indecifráveis pensamentos, de tudo que ocultamos, de tudo quanto amamos, de tudo que desejamos furtar aos olhos humanos. E eles a abrem, escancaram, não é isso algo atroz¹?”

Enfim fui convencido pelo meu médico, pelos meus familiares, pelos amigos e pelo próprio amor aos meus e a vida.
De chegada vestiram-me um pijama feito de um tecido muito parecido com aqueles usados pelos lutadores de arte marcial, com uma cor amarelada por cima do que um dia já fora branco. O jantar, item obrigatório, era às quatro da tarde. Vi pacientes em celas acolchoadas. Ouvi gritos e gargalhadas tão horríveis que deixariam envergonhado qualquer bom diretor de filme de terror.
Finalmente chegou o dia da terapia de choque. É um processo físico terrível, do qual não tenho a mais vaga lembrança. O médico que o administrava parecia ter saído de um dos círculos infernais de Dante e só nos faltava dizer: chegastes alma culposa!
Os tratamentos eram aplicados no subsolo do hospital. Todos os pacientes que seriam submetidos ao ECT, naquele dia, desciam até lá, nas profundezas do inferno de Dante. Usávamos, todos, roupões de banho e sentíamos-nos, ali enfileirados, como presidiários, só faltavam as correntes. Durante a espera, nos confortávamos, pois, todos estavam desesperados e aterrorizados.
Quando saí do inferno, tinha perdido completamente a memória. Ainda hoje não lembro das conversas que tive naquele dia. Nos dias subseqüentes não conseguia executar uma simples tarefa como dobrar um papel. Aos poucos tudo começou a funcionar melhor, porém, ficaram, para sempre, pequenas lacunas em minha memória. Mas foi o tratamento de choque que me salvou. A morte foi embora. Os momentos ruins foram suavizados e com os remédios comecei a melhorar; tanto que me foi permitido usar um lápis e ter um caderno e com ele um amigo: o Maluco Beleza.
Dois meses depois, quando as portas de meu refúgio foram abertas e poderia voltar ao meu mundo, uma expectativa me dominava: como me sentiria nele?
Caminhei relutante até a porta que dava acesso a sala de espera, lá estavam minha mãe e minha noiva; descemos juntos a escadaria e chegamos aos jardins que circundavam a entrada da clínica; quando vi aquele céu infinitamente azul, o colorido das flores e senti a brisa perfumada daquela manhã, não pude conter as lágrimas e chorei.

Naquele espelho,
Os olhos que via,
Não eram meus olhos;
Eram os olhos da minha dor.


Naquele espelho via uma criatura que não conhecia,
Mas com quem deveria conviver e dividir minha mente;
Até que ela fosse embora.


EPÍLOGO
A depressão é apavorante demais, e por mais que eu tente descrevê-la, ela não cabe em palavras sons e imagens. Ela lhe tira a capacidade de aproveitar a vida, de caminhar, de conversar. Ela lhe tira a paz através dos terrores noturnos, e dos diurnos. Não há, por mínimo que seja, algo de bom que dela se possa dizer. Outras pessoas insinuam que sabem o que é estar deprimido; elas podem até achar, mas não sabem. Só quem passou por ela, que viu sua face, sabe como ela é: insuportável. No entanto, ela me ensinou a apreciar mais à vida, a aproveitar mais o meu dia. Ensinou-me a enxergar o que há de melhor e de pior nas pessoas. Mostrou-me os valores da família, do afeto, da amizade, da lealdade e de ir até o fim. Conheci os limites de minha mente e de meu coração, e percebi como os dois são frágeis. Não posso, dentro da minha normalidade, imaginar, sequer, que um dia me torne indiferente à vida, porque sei o quanto ela vale.
____________________________
1 – Baseado em um trecho de “O Louco de Guy de Maupassant.
Esse texto contem uma opinião extremamente pessoal; assim deve ser encarado,e nada mais, além disso.


RSérgio

 
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RSérgio
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 13/03/2007 14:26  Atualizado: 13/03/2007 14:26
 Re: ANATOMIA DE UMA DEPRESSÃO
Este texto é uma grande lição de vida ...
adorei, parabéns