Dia 29 passado, o poeta Mario Quintana (seu nome não tem acento) completaria 102 anos. Mais do que um poeta comum, Quintana era um mágico ou aprendiz de feiticeiro, título de um dos seus livros, capaz de transformar estrelas em grilos e vice-versa.
Meu primeiro enconcontro com o poeta de A Rua dos Cataventos, assim se chamou seu livro de estréia (uma reunião de sonetos), publicado em 1938, quando o soneto andava em baixa, foi pouco amistoso. O poeta viera a São Paulo para uma palestra na Biblioteca Mário de Andrade. O Diário de S. Paulo incumbiu-me de entrevistá-lo. Arredio, ao fim da palestra, o poeta negou-me a entrevista. Mas disse-me quatro ou cinco frases, que à sua revelia transformei em matéria de meia página.
Na manhã seguinte, o telefone tocou na redação do jornal. Pensei tratar-se de brincadeira de mau gosto, coisa comum entre jornalistas. Não era. Do outro lado da linha, estava Mario Quintana, com seu sotaque gaúcho, cheio de agradecimentos. Seu gesto fez-me ver que a negativa da entrevista nada tinha de arrogância, mas pura timidez.
Passaram-se os anos, eu já não era mais o repórter tímido e nem poeta inédito. Encontrei novamente Quintana, na Bienal do Livro, no Parque Ibirapuera, em São Paulo também. De terno surrado, sem gravata, cigarro entre os dedos - era fumante inveterado, a exemplo(mau) do autor destas linhas -, não sei como reconheceu-me. Saiu da cadeira onde estava e caminhou na minha direção. Trazia na mão o exemplar de Esconderijos do Tempo, livro que estava lançando. Não permitiu que eu o comprasse. Presenteou-me, com dedicatória e direito a um café.
No dia seguinte, saímos, Quintana e eu, num passeio pelo centro velho de São Paulo. Paramos num bar perto da Academia Paulista de Letras. Tomei vários conhaques. Mario, que já não bebia mais, encheu a cara de café. Na hora da conta, eu quis pagar. O poeta, com um gesto, impediu-me. Arrancou cédulas amarrotadas do bolso do paletó e, colocando-as sobre o pires, disse: "Permita que um poeta velho pague a despesa de um poeta novo." Senti-me um Dante naquela hora ou um Quintana - por que não?
Despedimo-nos. Não nos vimos nunca mais. Mas trocamos algumas cartas ao longo dos anos. As dele guardo-as até hoje, como verdadeiras relíquias. Se me perguntarem quando foi este nosso último encontro, não hesitarei em responder que foi ontem. Sim, ontem. Porque para a poesia o tempo não existe. Assim como para Mario Quintana, o tempo sempre foi um ponto de vista dos relógios.
Um beijo, Mario.
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Júlio Saraiva