Contos : 

a estrada termina onde a solidão não teme

 
O vento agita as árvores, as árvores quebram seus ramos. Seus ramos quando ganham a velocidade da queda-livre tornam-se pesados.

Cá em baixo, na rua, vem um automóvel de passageiros: dois à frente e dois atrás.
Acordaram cedíssimo para preparar a merenda e para evitar o trânsito na via rápida.
Vão com destino a Fátima. Cada um fez uma cruz antes de se ligar o carro.

O sono das pessoas vai-se perdendo a cada quilómetro. O tempo não é obstáculo para a fé.
A chuva pouco importa.
Os vidros estão fechados, o desembaciador está ligado. A música é feita pelos que vão dentro do carro.
A respiração substitui a sofagem.
A dona Quinhas espera que o seu marido se endireite daquela vidinha que todos conhecem, com dúzias de orações ao pé da Nossa Senhora.

A dona Arminda com quatro velas quererá certamente ver-se livre do mal da figadeira que os médicos dizem não há nada a fazer. O condutor é pobre a pedir e pede apenas felicidade. A sua mulher, a dona Cândida, vai pelo passeio, embora o reumático lhe faça acreditar mais em milagres.

O vento agita as àrvores, as árvores inclinam-se mais não caem. Seus ramos agitados provocam ligeiras alucinações. O automóvel de três ou quatro toneladas é um brinquedo nas mãos da desgraça.
A trovoada é uma lâmpada quase a fundir. A estrada termina onde a solidão não teme. Todos rezam em uníssono apelo.
Deus está em áfrica. Se não está, devia de estar. Os terços nas mãos das mulheres ganham outra dimensão.
O medo é um bisturi apontado ao coração. A semente é a semente. Dez da manhã na IP5 não são dez da manhã no Cambodja. Mas o efeito é o mesmo.
Um morto aqui é um morto em todo o mundo. As notícias correm mais que um veleiro.
O sangue é um juiz de fora. A religião mete os pés debeixo da mesa. Três mulheres e um homem iam com destino de fé. Não chegaram lá porque um ramo grosso e mudo caiu. Furou a chapa do automóvel.
O condutor teve sorte graças a Deus. As mulheres, a ver vamos se a medicina tem tanta rapidez como o ramo que caiu. As contas do terço espalhadas no tablier. Mas não vale apena fazer contas.

Será que deixaram de sofrer de uma vez por todas? Onde está escrito que a dor é passageira? Por favor, não peças mais do que a felicidade. Já é tão alto o cerco que para lá das nuvens não vejo boi. Escuro. Escuridão.
De quem é a culpa? Ah, já sei! A culpa é do electricista. É sempre assim.

 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/07/2008 03:20  Atualizado: 29/07/2008 03:20
 Re: a estrada termina onde a solidão não teme
Foste tu que escreveste este?


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/07/2008 09:12  Atualizado: 29/07/2008 09:12
 Re: a estrada termina onde a solidão não teme
O tema é interessante, não será um lugar comum, mas sempre uma abordagem sentida e merecida da ruralidade que nos asfixia. Há uma ruralidade que nos liberta, note-se. E a Fé também deverá ser esclarecida. Como o futebol e a política. E a corrupção banida, claro!Esse papel pertence, em primeira mão, aos intelectuais, que pelos vistos preferem ser secretários de estado, coadujvando ministros que são imbecis.O Flávo possue um estilo límpido. Talvez demasiado, porque abusa das frases muito curtas, que tornam o texto soluçante.Nada que a prática não aperfeiçoe.Qunato ao resto, tudo bem. Aplausos e abraços.


Enviado por Tópico
cleo
Publicado: 29/07/2008 11:25  Atualizado: 29/07/2008 11:25
Usuário desde: 02/03/2007
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Mensagens: 3731
 Re: a estrada termina onde a solidão não teme
Sempre que se ouvem notícias de acidentes que envolvem autocarros de devotos peregrinos, movidos pela força da fé que os impulsiona a irem rezar aos pés da Santa em que tanto acreditam, penso para comigo... afinal, onde raio está Deus, que não os escolta na viagem de ida e de volta?!

Gostei imenso de ler este texto, pois vai ao encontro do que sinto aquando dessas notícias.
Além de que adorei a forma poética com que o escreveste.

Beijo


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 29/07/2008 13:07  Atualizado: 29/07/2008 13:07
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 Re: a estrada termina onde a solidão não teme
Gostei de ler.
" O condutor é pobre a pedir e pede apenas a felicidade."

A leitura envolveu-me ao ponto de ter ficado triste com o final.´
É a vida...


Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 31/07/2008 20:10  Atualizado: 31/07/2008 20:10
Colaborador
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Localidade: braga.
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 a estrada termina onde a solidão não teme para o flávio
e não temas. a escuridão é o ponto alto de um bom poeta e nela, sem electricista, estou em paz.
a loucura também, a loucura mordaz. fico. agito.
poeta sei que nunca serei ainda assim um dia tentei sê-lo devagar para não cair.

um beijo ó senhor da escrita e contos eternos.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/08/2008 23:49  Atualizado: 03/08/2008 12:36
 Re: a estrada termina onde a solidão não teme
PaZ!!!

Magnífico... Eu não diria que a culpa não é do electricista e tão pouco do ramo que caiu! A culpa é de quem de deixam cegar pela crença nos milagres e seguiu o seu caminho vendo a trovoada a caminho! (ou não... afinal... a culpa é uma dama solteira) xD

bjs*** adorei ler!