Amanhecer, sobre o rio, da margem sul. Suspenso o tempo num limbo de céu e águas de azul cinzento, fundidos em poalha de anil, suspensos os barcos ao longe, revelando o horizonte.
Águas de prata batida, vidro martelado, cobre e latão, lava.
Laranja incandescente nascendo, definindo os limites da distância, lançando reflexos e fogo sobre a ondulante e líquida superfície, até atingir a inefável luz, quase tangencial ao sol, impossível obliquidade.
Depois os violetas e novamente o azul, agora profundo e verde, já sob o disco amarelo, pêndulo do tempo sobre.
Marcado o começo da vida.
De vela bem esticada ia a canoa inclinada, sobre o Tejo, deslizando rápida em direcção à barra. Nela, feliz, uma vez mais cumprindo a antiga e eterna paixão, Luís sentia na face sardenta os salpicos, deixando o vento amar-lhe os cabelos.
-“Vento sudoeste, mansinho e panga, é de tremer dele, quando se zanga.”
Luciana, encostada à amurada do barco, penetrava de encanto a paisagem, voando rasante a imaginação sobre o Tejo, os olhos sobre a ponte, para as nuvens no poente, em tons de cinzento forte. Queria ver de um único olhar Lisboa, todos os becos e encostas, em mágicas nuances de um esbatido ocre, povoado de estalidos de asas de pombas. A sólida estrutura do antigo barco parecia fazer amor com as ondas, entre murmúrios líquidos e gritos de gaivotas.
-“Horizonte puro, com fuzis brilhando, terás dia brando, com calor seguro.”
A outra margem, o levantar do olhar, a planura inquieta do Mar da Palha, os barcos lentos. Noutra vista, sob as nuvens o errante trajecto de gaivota, ou um lento subir de avião distante no azul também cinzento forte.
Que intensa a sensação da globalidade destas imagens, ou melhor, da interpenetração, diálogo, destas com os seus sentidos! As descobertas, revelações, que aqui sempre tivera, na travessia do seu amado rio, este largo rio, Tejo de seu nome pleno de mistério, descendo, rolando, espalhando-se pelas planas margens, tocando de ternura os seus amantes, transformando-os em molhados navegantes de sonhos.
O velho marinheiro acompanhava-lhe o encantamento total pelo brilho dos olhos e pelo prazer dos lábios, sorvendo pelas narinas o límpido e perfumado mistério de todos os mares.
-“Miragem que espante, vento de levante.”
Há já alguns anos descera sobre a bela e reclinada urbe, planando primeiro sobre os seus líricos telhados, luminosa paixão de todos os seus pintores, mergulhando no encanto das vielas de Alfama, pousando sobre o seu coração de antigos sons, e a espera deste encontro se alongara na demora.
Todavia, a incerteza se questionava: se decerto captara o seu mistério criador ou se, cativa dos seus encantos se quedara, inerte e contemplativa. De onde melhor ponto de vista lhe teria dado a perspectiva totalizante? De cima, descendo dos céus sobre algumas vetustas casas, ou daqui, no meio do rio?
Aquele jovem louro, com ar de andarilho e vestido “à hippie”, espaçadamente recebia explicações do marujo, a quem tinha parecido estrangeiro, holandês ou coisa parecida…
-“Nuvens finas, sem ligação, bom tempo, brisas de feição.”
Explicava correntes e ventos, cuidados e marés, saber de experiência feito numa vida sobre a móvel superfície de amplos horizontes, irmanado com a sua natureza líquida, sentindo-lhe as variações do corpo com calma e coragem, trabalhando-a com os dedos cheios de ritmo e de poética magia em calmas cadências, sem pressas porque inexorável, tal como um pôr-do-sol o é.
-“Sol posto ledo, com claro ao norte, andar sem medo, que estás com sorte.”
Luís certamente traria aproximações às ideias procuradas, formando em ambos o dipolo deslizante sobre o mar de conceitos e de imagens, suspendendo e acelerando-lhes o tempo, encurtando as arestas da expressividade, despoletando clarões, fazendo surgir sínteses de instantâneo fulgor.
Acende-se espontânea em Luís a imagem do rosto de Luciana, lúcido e determinado, ainda que toldado na sombra das dúvidas, coadas pelas espessas lentes dos seus óculos. Era sempre através desses cristais redondos que lhe via a fascinação dos olhos, saltitando sobre as alegrias cromáticas.
-“Nuvens aos pares, paradas, cor de cobre, é temporal que se descobre.”
Descoberta a face de Luciana um dia ao findar da madrugada sobre o verde de um relvado, sob o diálogo lento dos dedos calmos, evento em que Luís passara a situar a origem do binómio das suas vidas.
Ela lembrava-se do que ele lhe dissera um dia, de olhos espantados, enfiando, no seu inimitável gesto, os dedos na cabeleira de poeta, que nem mesmo sabia como lhe nascera essa clarividência.
-“Brilhante nascente que nuvens desfaz, reúne a companha que bom tempo nos traz.”
Era sempre ele quem, depois de alguns dias de pensamentos nebulosos, lhe vinha trazer a clareza, a conclusão, em surpreendente perplexidade, por nunca antes ter pensado nisso.
Encorajava-a sempre, via como era importante o objectivo a que ela se tinha proposto, não apenas uma questão de obstinada afirmação pessoal.
-“Depois da chuva, nevoeiro, tens bom tempo, marinheiro.”
Luís lembrava-se agora da sua última conversa, em que Luciana desfiou com a habitual persistência as dificuldades da incompreensão dos colegas, que resistiam não só passivamente à integração de uma pessoa que exigia o direito de também ser diferente, sentindo-a como a intrusão da desarmonia no sereno mundo do culto do Belo.
-“Se tens vento e depois água, deixa andar que não faz mágoa.”
Luciana, com mal disfarçada angústia, dissera-lhe que o mais difícil não consistia no estudo da História da Arte, ou no aprendizado das técnicas de expressão plástica, mas sim na passagem ao domínio dos materiais, na sempre presente e inexorável muralha dos seus contraditórios músculos, em que no entanto perplexamente encontrava as plausíveis razões da própria originalidade.
-“Vaga ao revés encrespada, vai dar-te o vento saltada.”
Da vida, Luciana queria tão-somente a necessária complexidade da realização pessoal, pelo que não prescindia de aproveitar as oportunidades que se lhe oferecessem, habitualmente escassas.
-“Se entra por terra a gaivota, é porque o temporal a enxota.”
Luís sabia que Luciana exigia, apenas e simplesmente, os mesmos direitos, por isso dizia-lhe que nem pensasse em rejeitar qualquer hipótese eventualmente surgida.
Assemelhavam-se a uma simbiose de análise e síntese, por isso era em conjunto que alcançavam a paz e também o desassossego, sonhos impossíveis em vidas solitárias, tornados vivências musicais de luz e alegria.
-“Vento contra a corrente, levanta mar imediatamente.”
Quis voltar mais vezes à inspiradora viagem, inspirar a humidade salgada e sentir o balanço da barca, o gemido do cordame, tactear a tensão da vela, enfunada de generosa energia, pura irmandade entre homens e Natureza, madeira e pano em rigor talhados, cristais da seiva do trabalho.
-“Foi-se o nordeste, turvou-se o azul; fugiu do norte, foi para o sul.”
Luciana tinha-lhe colocado a questão dos pontos de vista, das perspectivas cromáticas da cidade que amavam, por isso Luís de novo a trouxe, no encantatório percurso da velha canoa. Novamente os acompanhava o velho marinheiro:
-“Manhã com arco mal vai ao barco; se à tarde vem, é pra teu bem.”
Apurar a vista para os pontos de referência, marcos da paisagem costeira, desde a Cidadela de Cascais, Forte Velho, Cai Água, Ponta da Rana, Santo Amaro, até dobrar a Ponta da Lage, em planos sucessivos, ao encontro da urbe de Ulisses.
Na barra de Lisboa, agora Luciana encontrava o outro ponto de perspectiva, entrando na beleza insuspeitada dos alinhamentos desde a foz do Tejo, caminhos que conduziam musicalmente àqueles reflexos de telhados húmidos. Alinhamento de S. Julião pelo Palácio da Ajuda.
-“Se ao vale a névoa baixar, vai para o mar. Mas se p’los montes se atrasa, fica em casa.”
Compreendia agora porque sempre tinham as paisagens marinhas sido motivo de fascinação para os pintores de todos os tempos. E pensar que este marinheiro-poeta – como muitos de nós – há muito trazia nos olhos todo este fulgor, passeando-o em pescarias e outras fainas, da Golada à Guia por Santa Marta, cruzando infinitas vezes o eixo da Barra, deixando para trás a Torre do Bugio, ao encontro dos Cachopos.
-“Mas se está claro, cheio de luz, haja alegria, que o tempo é de truz!” – explicava-lhe sem aparência de entusiasmo aquele homem, sóbrio de palavras, de sabedoria misteriosa e rosto duro, de cuja imagem Luciana viria a plasmar espantosa expressão cromática, povoada de gaivotas em salgado marulhar.
-“Limpo horizonte que relampeja, dia sereno, calma sobeja.”
Aprendia onde eram no Tejo as correntes mais fortes, a montante da cidade próximo das margens, mais do que a meio em que corriam sobre a direita as águas, encontrando-se com as irmãs, em bailadeiras…
-“Quando ao sol-posto o norte é puro, tens bom tempo seguro.”
…e os caprichos das massas líquidas saindo ao encontro do mar, da planitude.
-“Rosado sol-posto, cariz bem disposto.”
Mas também:
-“Quando quiseres mentir, fala do tempo que há de vir.”
Olhando para o indefinido, para o lado da barra, para onde já o Álvaro de Campos tinha ido em Ode ao encontro dos piratas, Luciana, marítima e líquida, distante e amanhecida, amando veleiros e barcos de madeira, sentia chamar as águas, sabendo agora porque para o mar correm os rios, humildes obreiros da sua grandeza.
José Jorge Frade
Último Capítulo de "Lúcido Mar"