Álvaro anotava os lugares, trajectórias e gradações do percurso marinho, relacionando rotas nos mapas costeiros.
A parte mais saliente da proa do barco, o beque, parecia estar sempre a apontar o caminho.
Aprendia que o caminho que o navio faz no espaço de um dia é chamado singradura. Que bordada é o caminho feito pelo navio até mudar de direcção.
Tudo isto derivando dos conceitos físicos do desenho da embarcação, ligado à linha de tozamento, que é a curva que determina a configuração do navio, de popa à proa, como lhe explicou o carpinteiro Domingos. Abatimento é o ângulo formado pela direcção da quilha e a esteira do barco.
A maior ou menor inclinação do gurupés ou do pau da bujarrona, arrufamento.
Por seu lado, Wirsug analisava a terminologia náutica relacionando-a com os possíveis afectos nela contidos.
"A beijo", por exemplo, quer dizer junto, unido, muito chegado. "Faltar o fundo", quando o ferro garra. "Brandear" é folgar um pouco, arriar devagar e sucessivamente, abrandar.
Poder manobrar sem se embaraçar com as embarcações fundeadas no porto de onde se larga é "estar em franquia". À acção de trazer para dentro do navio, mais ou menos, o punho da escota de uma vela, chamam "caçar".
Mas o termo que achava mais significativo da personalização dos barcos por quem neles navega era o que usam quando o navio, metido a virar, por efeito de vaga ou má manobra, antes de pôr o pano completamente sobre, ou a grivar, pára e torna a cabecear para o bordo em que ia: - "mentir".
Como que transformada a embarcação em Universidade viva, Domingos agora substituira Henrique nas explicações, pois também ele sabia alguma coisa da lide das velas:
-"Rizar é diminuir a superfície das velas por meio dos rizes. Para rizar um latino quadrangular dá-se uma talha ou teque ao amante da forra do lado da escota e passa-se a boça ao garruncho do lado da amura. Pronto a alar, arria o pique e a boca o bastante para que os garrunchos da forra vão aos seus lugares, e ala pela talha, cujo chicote, bem tesado, dê volta ao cunho da retranca e faz-se a amura. Iça-se a boca e o pique, a ficarem bem esticadas a valuma e a testa. A manobra executa-se com o navio a filar vento, que é estar aproado ao vento ou à corrente, ou quase."
Ali a autoridade destes professores não trazia pompas cessórias, o que não é necessário para que a sintamos. Podia-se bem dizer que estes mestres não falavam "de cátedra", antes sobre o lastro seguro das mãos calejadas, que deram sabor ao vivido.
Luciana e Luís ouviam atentos as explicações daquele escultor da mistura de odores, da madeira e do sal, do vento.
-"Rizar um latino triangular. Se tem rizes, arria-se a adriça, impune-se pelos garrunchos da forra, ficando o da valuma a fazer de punho da escota. Amarram-se os rizes e torna a içar. Se não tem rizes, mete-se à antegalha, isto é, pelo lado da pena, arriando a vela e, a uma distância conveniente da pena, une-se o gurutil à valuma, pasa-se uma forte percinta de lona e por cima um botão redondo, ficando assim diminuida a superfície da vela. Iça-se e caça-se."
Também de fundear ou amarrar se faz a ciência das oportunidades:
"Se o vento e corrente vierem na mesma direcção, orça-se a pôr o pano sobre e quando o navio pára, larga-se o ferro, carregando e ferrando logo que se verifique ter agarrado o fundo. Se o vento sopra em sentido contrário à corrente, deve, na grande maioria dos casos, demandar o fundeadouro com água no bico, carregando a tempo, primeiro a bujarrona, depois a grande e por fim a de estai, de forma a chegar ao sítio onde deve largar ferro sem nehum pano largo e logo que o navio perder o seguimento, fundeia-se. O filame a dar à amarra é de três alturas do fundo. Para amarrar dois ferros, deve-se navegar com água no bico até mais além do sítio onde se quer ficar e aí largar-se um ferro. Depois deixa-se descair com a água até seis vezes a altura do fundo e fundeia-se o segundo ferro. Ala depois pela primeira amarra até metade, arriando simultanamente à outra igual filame e abita-se, o que se chama permear as amarras."
Wirsung pressente de modo difuso a semelhança das manobras de marcação com a arte de escrever.
José Jorge Frade
Capítulo 14 de "Lúcido Mar"