Era Agosto de 81, e de tão distante o olhar que simultaneamente ver se poderia o pássaro e respectiva sombra, Lovat-Erin julgava agora ser possível objectivar o seu passado:
A primeira fuga de miúdo, para o Campo Grande, aventura acabada pelos braços de varina lisboeta que o devolveu a casa, para de seguida despedaçar os 'Reader's Digest' do pai, pregar partidas várias, grandes sustos à mãe, e desatar a correr em liberta travessia sem rédeas o asfalto da Avenida de Roma.
No aspecto apenas os olhos rebrilhavam, denunciando malandrice: bonézinho e calções azuis da Camisaria Primaz, não fosse o desprender-se em sonoras gargalhadas, ninguém o diria autor de vingativas actividades, ou da sua tendência para o escândalo público, além da manifesta agressividade subversiva de sub-reptíciamente lançar pedras da calçada aos automóveis que circulavam, aproveitando qualquer momentânea distração materna. Cheio de habilidades manuais em vandálicas utilizações, era porém ajoelhado que pedia ao Menino Jesus um carro de corridas, tratando depois os brinquedos com um misto de curiosidade e violência criativa, em inevitáveis destruições, à descoberta dos segredos do interior dos comboios eléctricos. Declarando querer vir a ser pedreiro, com autêntica fascinação, repetidamente por outro lado se entregava mais uma vez à utilização escaqueirante de enxadas, terrível forma de arreliar o avô. Sabia assustar os primos inventando à noite activos roedores, simulando os seus ruídos. Gostando também de fortes emoções, desceu íngreme ladeira em carrinha destravada, com espantosa imunidade às consequências. No supremo requinte da malvadez chegava a aterrorizar as galinhas e pintainhos que apanhasse ao pé de futebolar. Foi talvez num desses transes que se assustou, passando então à faceta de menino copo-de-leite, alfacinha de Entrecampos, abandonando a incipiente "laranja-mecânica".
Os deleites poéticos nasceram, passando a apreciar o bucolismo dos rebanhos, surgindo aperplexidade ao observar os barcos de brinquedo dos rapazes pobres, com velas de lenços de assoar, lançados nos lagos do Jardim da Parada. A canção predilecta: "Lisboa, Cidade Amiga,/és meu berço de embalar;/ensina-me uma cantiga/das que tu sabes cantar.//Uma cantiga singela,/daquelas de enfeitiçar,/para eu cantar à janela/quando o meu amor passar." Dessa altura também os primeiros livros, do "João Ratão", quando estava doente, e que saboreava lentamente na paz do quarto, ao lado do espelho. A primeira disputa escolar, envolvendo um Sporting-Benfica, toldou-lhe a imaginação para modelar o seu barro, que acabou por ficar surpreendentemente em feitio de pão. Fazia do bilhete de comboio da linha uma hélice no Verão da praia de Carcavelos, profetizando futuros aviões. Ainda as canções de amor eram as preferidas: "Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora...". Romântico, já até das facas de cartão dos palhaços do Coliseu medo tinha. Já a saudade também o impelia a indagar todos os dias o carteiro de campo de Ourique por cartas do pai. Inventava alternativas para as adivinhas clássicas, quando ao encontro dos seus seis anos vieram os profícuos anos sessenta, mas isso é já outra história.
José Jorge Frade
(Capítulo 6 de Lúcido Mar)