Luciana d'Arouet recorda as origens da fascinação pela expressão plástica. Situava a memória na visita à casa-museu da senhora Haydée R. B. .
Aquela cidade de província gaúcha, longinquamente plantada na perene verde planície, junto à fronteira do Uruguai, era por vezes transformada em horizonte líquido, esparsamente povoado por quadrúpedes, aqui e além por rebentos vegetais, em tranquila quietude, nalguns pontos pantanosamente traiçoeira.
Lembra-se de como nos seus quinze anos o olhar de então se demorava no mistério das definições cromáticas, tão diferentes da rebelde paisagem das pampas.
A transposição dessa rebeldia natural revelava-se seguramente mais difícil do que a identificação das nuances do pôr-do-sol.
Recorda também como a velha senhora enumerava as obras, citadas no Dicionário E. Benezit, quadros adquiridos nos seus “áureos tempos”, directamente comprados aos artistas, o que fazia sempre questão de sublinhar.
Aos poucos alinhava os nomes, envoltos em névoa, mitificados pelo tempo de adolescência, de algumas telas, 'hors concours', trazendo associados mágicos nomes de deuses, vulgarmente chamados artistas: "Un ami de jeu" de Chocarne Moreau, "L'Impatient" de Alcebíades Landini, "Anxieté" de Georges Maroniez, "Quietude" de Aspard Migl, "La neige sur la plage de Vissant" de Me. V. Demont Breton, "La Servante" de Albert Lynch, "Létang du Pére Laguette" e "Route de Giannié" de Maurice Moisset, "Pendant la messe" de Teodore Boulard...
Entre os anos de 1928 e 1930, alguns teriam sido medalhados no 'Salon' de Paris, outros ainda teriam sido destacados com a "Legion d'Honneur".
Nessas telas, que provavelmente tinham constituído a sua iniciação nas artes plásticas, fora sem dúvida “o Belo” que a fascinara, mas também o aperceber-se de uma forma de tornar o caminho de aproximação entre os homens mais curto – como soube depois que Claude Roy dissera.
Só bastante mais tarde, cerca de dois anos passados sobre essa visita, já de volta à multissecular Europa, já longe do Novo Mundo, deu por si a estruturar a sua consciência estética, a tentar definir os contornos da "ciência do Belo".
Desenvolvendo variações sobre o tema, multiplicando as facetas para obter a imagem da complexidade, naquela época escreveu Luciana no caderno de apontamentos do Liceu:
"Na estrutura do Belo, forma e significado constituem um todo indissociável. Porém, a dificuldade em caracterizá-lo resulta de ser função de múltiplas variáveis, ou seja: significado e forma, emergindo de e convergindo sobre um sujeito complexo, transformam a forma apreendida em significado.
O objecto da intuição, mais do que um conceito, parece haver de nos ficar sempre algo, que resiste à análise definidora. Objecto que pelas já referidas características próprias pode produzir no espírito uma emoção, que chamamos estética, ou melhor: uma reacção de agrado, admiração, identificação.
Independentemente do vago e paradoxal sentido destas impressões sobre a "tábua rasa" da mente, o que parece produzir a impressão de beleza é a convergência dos elementos, levando à impressão de conjunto, de harmonia.
Mais polémico é no entanto aceitar-se que o Belo se ofereça aos seus fruidores de forma directa e imediata, na sua totalidade significante, o que implicaria a natureza intuitiva. Essa intuição poder-se-ia definir como percepção sintética, ou global, do conjunto dos elementos e da dialéctica das suas relações."
Culminando estas iniciais e trabalhosas considerações, caldeadas nas ideias dos pensadores clássicos, Luciana situava a elaboração da questão fundamental da Arte, tal como a via na altura:
"O que mais importa não é identificar-se com a técnica, ou linguagem, de que se serve, mas servir-se destas para exprimir algo mais, não devendo o artista limitar-se a copiar. Terá de recriar.
E ao recriar a realidade por meio da arte, há de procurar sugerir o autêntico e exprimir o significativo, como meio de consciencialização social. Aqui se coloca a questão valorativa, a ética da promoção do Homem.
A Arte seria então factor de aprofundamento e esclarecimento da Vida. Ambas as vertentes, ética e estética, têm no Homem a sua raiz, ambas visam aos valores humanistas, objectivo último."
Assim via Luciana que nessa melancólica recordação, talvez de um modo inconsciente, subterrâneo e sincrético, se tinha originado o seu actual interesse pela problemática artística.
Aí via a fonte da "vocação" que sentia, da vontade de aprofundar os conhecimentos, apelo que pensava concretizar na Escola de Artes Plásticas de Lisboa.
A criação artística, trabalhando os temas, as vivências, as técnicas de expressão, através da sua condição 'sine qua non' – a imaginação – era o seu objectivo, a sua angústia, a sua luta.
Mais do que as condições da investigação e da invenção científicas, parecia a Luciana necessário à Arte, além de factores como a carência cultural e o seu nível de desenvolvimento e complexidade, e de condições como a curiosidade e a reflexão, acima de tudo o poder da imaginação, a criação e a projecção de imagens reprodutíveis, geradoras de espanto e clareza.
Sobre os factores da invenção, da criatividade, tinham vindo ao seu encontro contribuições de alguns professores, apontando os sociológicos, como a necessidade do meio social, a liberdade e o factor económico, nitidamente actuantes sobre vectores pessoais, como a condicionante genética, o espírito de curiosidade e crítica, imbuídos estes, inevitavelmente, do omnipresente afecto.
Mas seriam só esses os meandros da criação? Ou haveria algo mais, permanecendo indecifrável, apenas individualmente e intransmissivelmente inteligível?
Era o que Luciana decididamente perseguia, com a persistência tenaz dos deficientes motores, com a delicadeza e naturalidade das danças dos camponeses de Brueghel.
José Jorge Frade
(Capítulo 1 de Lúcido Mar)