Meu amigo Mosa, esses repentes inesperados que o destino nos presenteia não podem e não devem passar incólumes dos impulsos literários de um escritor, que até amador se avexa em anunciar-se.
Pois bem, o livro sobre Manuel Bandeira, "Crônicas inéditas I", foi lançado agora em abril de 2008 pela editora Cosacnaify, e eu tive o privilégio de adquiri-lo logo, ainda quase quentinho do forno. Você estava ao meu lado na livraria Siciliano do Botafogo Praia Shopping, no Rio de Janeiro, acompanhando as minhas titubeações orçamentárias para decidir se o compraria ou não, dado o salgado preço. Como você bem sabe e presenciou saquei o meu castigado cartão de crédito e choraminguei um parcelamento a perder de vista, que não veio, tendo de pagá-lo em duas vezes "sem juros" segundo a vendedora. Chegando ao trabalho abri ao acaso o livro procurando alguma coisa para ler e deparei-me com o texto "Uma tarde triste numa casa de saúde", na página 210. Ao ler essa crônica percebi logo de imediato - com certa humildade e um indisfarçável regozijo - o estilo de escrita de Manuel Bandeira, muito parecido com o meu. Um assunto pessoal que, em princípio, parece a ninguém interessar, às vezes impressiona tanto a mente do poeta que ele acha-se imperiosamente obrigado a relatá-lo a quem quiser e tiver o dissabor de ler. Eu li e gostei. Parecia estar diante de um texto meu plagiado por Bandeira. Isso me animou e fez-me tomar coragem de parar com aquela velha mania de envergonhar-me em assumir a minha sina literária, achando-me um "metido a tudo", já que me atrevo em outras artes, como você bem sabe e sofre quando me acho inspirado. A partir de agora, decidi, vou ter postura mais profissional diante de minha inspiração literária. Tomei coragem e resolvi que vou reunir todas as minhas crônicas em um só livro e enviá-lo para alguma editora.
Manuel Bandeira era um cronista profissional e formidável. Esse livro surgiu a partir da reunião de suas crônicas enviadas para a imprensa no período de 1920 a 1931, como declara a ante capa. Eu (muitos risos), que nunca escrevi uma carta, sequer, de reclamação de cliente enganado, para algum jornal de proeminência - para falar a verdade umas duas ou três, acho que já enviei sim - não poderia jamais considerar-me um cronista, pois este estilo sugere escritos vindos do cotidiano que se seguem no tempo e são publicados sistematicamente por algum periódico, daí o nome “crônica” que vem de cronos, tempo etc. e tal... Bem, mas para os meus escritos tive a ousadia de classificá-los como crônicas, pois são expressões de minhas observações do cotidiano as quais não gostaria de perdê-las no banco de dados cerebral.
As minhas crônicas têm pelo menos alguns leitores do "Recanto das Letras" e eu próprio, que as releio sempre e com prazer, por mais tendencioso que isso pareça.
Pois bem, meu bom e paciente amigo Mosa, como eu ia dizendo no início desta carta, tive a sorte de ser presenteado pelo deus mitológico das artes, Dionísio (que aqui evoco apenas para não deixá-lo morrer no esquecimento), em me oferecer esse maravilhoso e saboroso livro, que já começo a devorar e misturar o seu sabor com o outro que já estava lendo, "A filosofia da Matemática", de Bertrand Russel, e sentir um paladar da salada de literatura com matemática, temperada com pitadas de filosofia.
A falta de sorte sua de me ser amigo se acentuará em nossos próximos almoços que serão, agora, impregnados de comentários sobre as crônicas desse modernista maravilhoso, Manuel Bandeira, além de nossas conversas sobre política, religião e as lindíssimas mulheres cariocas.
Vou aproveitar o plágio que Manuel Bandeira fazia de meus escritos e te relatar crônicas minhas como sendo dele e esperar de ti um elogio entusiasmado só para bem depois te dizer a verdade de minha covardia em declarar-me autor, e então perceber um desdém educado vindo de um amigo tão inestimável como tu.
Abraços fraternais
Gideon Marinho Gonçalves