Escreve tudo o que vê. Aquela cena de pancadaria à saída do cinema por causa de ciumes, valeu-lhe um conto premiado pela associação local de escritores.
Depois outro prémio arrecadado pela história que fala da rapariga violada e que passados dias apareceu morta sobre as àguas de um rio no sul de Espanha. Os críticos de imprensa Minhota elogiaram-lhe os seus dotes de descrição.
Um misto de negro com verduras.
Parece que tinha vivido toda a situação, parecia ter sido ele o autor dos crimes; por ser tão real e tão minuciosa a descrição dos factos.
Se ele não fosse escritor daria um bom bandido, disse o senhor João Silva Morais, também ele escritor, embora com menor talento, no dia da apresentação deste livro de histórias tão macabras quanto o seu significado. O escritor mente, disse o autor a justificar o dito.
A ficção e a realidade por vezes vão na mesma carruagem de comboios. Só temos de saber a quem é que nos vamos dirigir.
O escritor vive dias rodeado de palavras, é convidado para defender os seus livros, falar deles como se falasse ao seu amor que está de regresso.
- Escrever, é ver o Ti João a acender um cigarro e imaginar o que ele estará a pensar
- Confirma-se! – Salienta o João Silva Morais que ninguém melhor do que ele conhece os métodos criativos do literato, ao ponto de todo e qualquer rascunho passar primeiro pelas suas mãos antes de ir à gráfica.
Todos os dias precisa de espreitar as vidas dos outros, como quem diz, precisa de captar ideias, frases soltas, tiques e gestos de pessoas que um dia, certamente sim, serão personagens do seu próximo livro. Para falar de amor precisa de amar, para falar de dor precisa de dar com a cabeça numa parede.
O seu mais recente romance já vai a meio. Uma história mirabolante, recheada de enredos sobre amores e traição, uma escrita vampírica, que tem como base a descoberta de um crime com a ajuda de um personagem que é investigador para resolver o enredo. A palavra morte era uma constante em cada página que passava. Mas o escritor achava que a morte não era bem assim. Teria que a viver para depois a vir contar com mais verdade.
Claro que não podia morrer se não, quem é que ia escrever a história?! Simples.
- Precisava de assistir por perto à morte de alguém – Confessou o escritor ao seu amigo de letras e bebedeiras.
Numa noite, que mais parecia ser puxada por animais cansados, a puta estava na rua, a exibir a sua perna quase até ao cu. Nas conservadoras não há registo destas mulheres. Apenas que são putas.
Alguém veio por detrás dela e apunhalou-a pelas costas. Viram a sombra esgueirar-se pelos prédios que, nas suas paredes, tinha o tamanho de um monstro.
Em casa do romancista as coisas iam tomando rumo. A história ganhou um corpo condensado, com um monstro a habitar nas páginas, em silêncio. Havia sangue nos rascunhos quando ele contava a passagem da puta que tinha sido apunhalada.
A descrição era tão exacta, tão cheia de medo, que o escritor foi apanhado pelo excesso de pormenor e levaram-no à bruta a tribunal para confrontar os factos com os ditos populares. Cá fora, no largo do tribunal, esperavam os ex-fãs do escritor, enfureciam-se rasgando páginas, incendiando livros da autoria do pressuposto criminoso.
O juiz decretou liberdade por falta de provas. À saída do tribunal o escritor foi cuspido e insultado de porco e assassino. Passaram-se anos sem que o promiscuo escritor escrevesse uma linha sequer das suas ideias.
Silenciou-se na paz húmida das palavras numa freguesia isolada de Trás-os-Montes, sem cortesias nem comunicação com o exterior.
Só mais tarde soube, quando decidiu pôr fim ao desertamento, comprando um televisor, que lá no Minho, desde o acontecido, existe alguém arrecadando vários prémios literários: um tal de João Silva Morais: o que conhecia a história antes de ir à gráfica.