Contos : 

sim, aceito, na saúde e na doença

 
Ainda antes de bater a porta do consultório do médico, o doutor voltou a repetir:
- Não se esqueça, a password é: Djf39k19X – Frisou – Não se esqueça!!

O homem foi-se, com os dias mal somadas. Mal se lembra do que lhe aconteceu. Foi triste, lembra-se que alguém pronunciou esta pequena frase num dia, de uma hora, de um minuto, num segundo qualquer que se passou mas que não se lembra.
Sabe que lhe cortaram a perna. Sabe porque sente, ou melhor, parece que ainda a tem mas já não a tem. O médico diz que é normal a sensação de que ainda tem a perna. Por azar a direita, que era a que tinha bom remate. O bombeiro que o foi buscar diz que teve de tapar os olhos. Só que os olhos meu amigo, foram feitos para a graça e para a desgraça. Não se pode escolher nem negar determinados ângulos.
Os olhos são pequenas galerias por onde passeiam os tristes e os contentes, gente fina e gente pobre.
- Quantos meses estiveste amarrado à máquina, a comer e a beber pelo soro?

O homem, que terá de recomeçar tudo de novo, inclusivé no amor, não sabe responder quanto tempo viveu sem viver, sem abrir os olhos, ligado a fios coloridos, a respirar por um tubo, urinando por ele abaixo.
Parece que foi apanhado na estrada por um camião pesado e, o seu corpo leve, voou contra a casa de alguém que não se importou com a sujidade na parede, do sangue. Mas, o que importa é que ele está melhor e não tarda nada e começa a trabalhar lá na docas, mas desta vez, atrás de uma secretária ou a controlar as entradas e saídas de cargueiros, já que não pode andar como andava.

Quase nem se lembra que algum dia teve duas pernas, que o seu casamento deu mal, que se irritava e fumava quase dois maços de cigarros por dia. Depressa se habituou a marchar num só pé, a dar um jeito ao corpo para subir e descer escadas. Até já consegue dançar, vejam lá. Só de manhã é que vem o pior. Ao levantar parece que foi apanhado pelo cerco de uma fogueira, com dores ardentes que, ao fim de dois ou três esticões à perna bem dados, o sangue começa a girar por todo ele e, é como se a máquina estivesse oleada, pronta para nova contagem de passos.
Fora estes segundos iniciais, contados pelos dedos, tudo rola dentro de um circulo de felicidade que ele próprio construiu no seu vagar. Aliás, até pensa em dar segundo nó de noivado.

Foi naquele dia de folga, na estação dos comboios, sem premeditar coisa alguma, sem perceber boi de resultados das suas orações, deu por si sentado ao lado dela, a que mais tarde, após trocas de palavras, viria a ter encontros consecutivos até daí extrair o primeiro beijo e oficializar o assunto de noivado.
O que Deus tira, acaba por recompensar de uma outra forma.
Neste caso, o homem foi prendado com alguém que lhe reconhece coragem e valentia. Os tempos avançaram e o homem tinha perdas de memória, ao ponto de esquecer o seu nome, a rua onde morava. Mas nada que um longo beijo não resolvesse.

Há dois dias atrás deu-se o pior, o homem estava em casa sozinho e caiu das escadas abaixo e, o seu corpo ficou meio encarquilhado, mas lá se levantou com a sua pouca força de braços.
Sentou-se.
Esperou que a densa nuvem que se havia instalado na cabeça, sumisse. Sentiu que algo não estava a bater como deve ser. Sentia-se outro, diferente do que era antes. Como se a sua alma tivesse emigrado para outro corpo.
Então, foi aí que reparou numa cicatriz nas costas, quase na nuca, que devia estar fechada, abriu-se num dos cantos, deixando algo suspeito à vista. Algo de plástico que ele continha dentro do seu corpo. Mas o que era ele não sabia. Tentou puxar esse pedacinho de plástico para fora dos seu corpo mas em vão. Parecia qualquer coisa de ligar e desligar. Interrogou-se. O que é que faz esta coisa dentro de mim?!

Neste momento alguém entra dentro de casa sem bater à porta, sem se importar com o barulho dos sapatos no soalho. Era a sua mais-que-tudo, com novidades boas acerca da boda que está prestes a chegar. Só faltam dois dias.
Perguntou-lhe se ele tinha ido buscar o pão, tal como ela lhe tinha pedido, e ele respondeu, numa cegueira de outros dias:
- Que fazes aqui na minha casa, nós estamos separados, não lembras?

E ela, a menina dos caracóis, a sua ex-mulher, com o cuidado que lhe tinham alertado, chegou-se bem perto dele, e, com a delicadeza que havia treinado, digitou a password: Djf39k19X, no tal aparelhinho perto da parte de trás do pescoço, tapando a ferida com um penso rápido e o homem respondeu como se fosse a primeira vez que avistasse a luz do dia:
- Sim fui buscar o pão, querida, está em cima da mesa.
Sorriu para depois sorrirem o dois. A única preocupação da mulher era a de todos os dias, antes dele acordar, digitar a password para que o homem esquecido se lembre que na sua cama está deitada a mulher que cumpre os votos de um dia ter dito que sim, aceito, na saúde e na doença.
 
Autor
flavio silver
 
Texto
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1974
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Enviado por Tópico
Tália
Publicado: 11/07/2008 13:56  Atualizado: 11/07/2008 13:56
Colaborador
Usuário desde: 18/09/2006
Localidade: Lisboa
Mensagens: 2489
 Re: sim, aceito, na saúde e na doença
Um texto que nos faz repensar tudo na vida.

Parabéns

Abraço


Enviado por Tópico
Carolina
Publicado: 11/07/2008 15:58  Atualizado: 11/07/2008 15:58
Membro de honra
Usuário desde: 04/07/2007
Localidade: Porto
Mensagens: 3422
 Re: sim, aceito, na saúde e na doença
Nem sempre é assim, acredita,
pelo menos para os homens, eu sei!

beijo


Enviado por Tópico
los
Publicado: 12/07/2008 00:29  Atualizado: 12/07/2008 00:29
Da casa!
Usuário desde: 01/07/2007
Localidade: Minho
Mensagens: 311
 Re: sim, aceito, na saúde e na doença
Flavio

Excelente!!!
Gostei de verdade amigo.

bjs,fica bem

Enviado por Tópico
Margarete
Publicado: 13/07/2008 12:43  Atualizado: 13/07/2008 12:43
Colaborador
Usuário desde: 10/02/2007
Localidade: braga.
Mensagens: 1199
 sim, aceito, na saúde e na doença para o flavio
sim aceito flávio. aceito a obrigação prazerosa de ler-te sempre e acompanhar-te por esta vida fora.
és um escritor dos grandes. desses grandes como o luar que nos entra pela janela para iluminar as horas de sono mal dormido.
carago, fico sem palavras (logo eu, elas sempre me sobraram).
um beijo em ti*
mar