“Todas as tardes levo a minha sombra a beber como uma nuvem no mar de que saiu o meu ser”. Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso
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Vagueio entre a tarde e a noite, nesta praia norte. O Sol acerca-se do horizonte, pronto a descortinar-se sobre o meu Mar…
Chega o fim-de-semana ao fim. Uma nova semana se aproxima, sinto-me minada por uma fadiga antiga. Não, não quero voltar à cidade. Quero amanhã de novo vir trazer a minha sombra a beber ao mar, quando o dia estiver prestes a findar. Quero, tal como hoje deitar o corpo nestas lajes tão minhas, tão familiares, beijá-las e molhá-las com o meu pranto. Quero fazer delas, dia após dia, na indolência do momento, o meu lugar secreto, o meu ponto de encontro, comigo, mar sem fim.
Hoje o dia esteve luminoso, de um azul efervescente. Apenas eu me revesti de nuvens baixas, nuvens de bruma e de espuma. Tão salgadas … Nem os ventos vindos de Sudoeste as conseguiram dissipar, acasalaram comigo desde a madrugada, noivaram pelo dia fora … até agora, aqui nesta enseada …
Sinto a Alma afogada, sinto um frio de chuva, sem que do céu caía uma só gota. Sinto-me encharcada até aos ossos da Alma.
Sinto que no Mar vive o Génio do Amor, o criador harmónico, aquele que tece pontes de equilíbrio. Busco-o, em sons minúsculos de silêncio, busco na busca eterna de uma fórmula resolvente, de uma equação aplicada, finalmente. E apenas sinto ao longe, na linha do horizonte, um polvilhar de átomos de ternura, um projectar de imagens nostálgicas de um contentamento para sempre perdido. O Mar devolve-me florestas de beijos recordados, de outras vidas e uma certeza de um eterno navegar na incerteza e a perda, e o dano, tudo permanentemente fundido.
Espraiada sobre a laje, uma grossa lágrima tomba. Envolve-a a brisa do Mar. É o teu cheiro, vindo na crista de uma onda… sinto-te desse lado, noutra praia. Experimento o teu abraço, forte, amigo… numa pureza intocável que me devolve a calma e a tranquilidade. O teu abraço, revestido de Saudade. O teu abraço poupa de espuma, vaga de lume… quente… devolve-me a Vida.
Aos poucos soergo-me; distendo os músculos retraídos; aconchego o corpo sobre o Xaile, percorro a praia, embalada no burburinho da rebentação.
Aos poucos aproximo-me da margem; oiço agora os chocalhos das ovelhas acorrentadas na cinta verde entre o mar e o povoado, misturados com o murmúrio do cacarejar das galinhas e os apitos e os clarins das crianças. São ruídos conhecidos, são os sons da vida e os coloridos com que mobilo as pupilas.
E os gatos, e os peixes estendidos sobre as redes, no eterno modo de o secar …
Aromas da terra e do mar, aqui nesta Península onde tudo se mistura na intemporalidade dos sentidos …
Entro no perímetro das casas, agora despidas de hortênsias. Brancas, amarelas, alinham-se em apenas duas ruas. Entre cumprimentos mais ou menos calorosos, chego ao portão, atravesso-o de mansinho…
Na soleira da porta cumprimento as buganvílias. Xiluca sente a minha chegada, roça-se-me nas pernas, num afago sentido. Subo as escadas, envoltas em silêncio…
Lá fora a noite aproxima-se a passos largos. Sei que mais um dia, quando a noite for apenas emudecimento e finalmente me deitar, quem chega já não me encontra!Parti, para um lugar, onde o meu coração habita. Chama-se POESIA!
Um lugar do qual só tu sabes a porta, só tu tens a chave! Porque a procuraste, e porque a descobriste.... "O caminho faz-se caminhando"... Sempre disse! Caminhando, sobre espinhos, pedras, calçadas, escarpas e abrindo estradas. Num processo. Tudo tem o seu tempo. No início não haviam caminhos, só sentimentos - que se não se explicam, não se controlam, existem. É quanto basta. Na procura, tantas e tantas vezes nos encontrámos e nos separámos...Dois puzzles em construção - um só puzzle!
Pura emoção, alquimia, magia... Feitiço da lua, Karma, sabe-se lá! Pouco importa.
E de novo e, uma vez mais … a Saudade morde a noite, a noite negra que chega e não me encontra: o corpo está sim, mas a alma, essa gravita, foge, escapa, para lá longe o coração habita! Fugiu, ficou presa na sombra que levei a beber ao mar, tal uma nuvem … e na imensidão nocturna do céu, o teu corpo encontra o meu; nas imagens, doces, tranquilas, do teu olhar fundo, refundo o meu melhor e espero a vinda do Génio do Amor, aquele que sei, vive nas águas desta Baia, que me afaga e te afaga, no retomar de cada vaga.
Sobre a Ilha habitada que eu sou, paira também, porque a sinto, uma nuvem, bem minha, formada pelos milhões de lágrimas salgadas, soltas sobre as lajes desta praia …
Uma nuvem, de algodão e mel, e de mágoa e fel … uma nuvem densa e espessa … promessa de uma retomar do ciclo da Vida.
Em gestos mecânicos, processo rituais de higiene e de pureza, liberto-me das vestes e dos pós da estrada, deixo que a água purifique o meu corpo, as essências e os óleos o cubram, visto-me de noite e parto … nas asas do meu anjo, flutuo na linha cósmica do horizonte … estabeleço a ponte! Fora eu ... uma Fortaleza ...
“Todas as tardes levo a minha sombra a beber como uma nuvem no mar de que saiu o meu ser”. Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso
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