Uma vida inteira a sentir o peso da mão. Um gosto intenso a saber a sal. As suas lágrimas: depósitos de águas sujas: na sua face já nem a maquilhagem se lhe pega.
Há quem não acredite que o destino esteja traçado. Por eu não acreditar no futuro é que não tenho conta no mercado. Sabe-se lá o que virá depois.
Na mulher sente-se uma aridez, a sombra de um corvo que espera a hora H de ela tombar. Casou há vinte anos mas nem por isso sabe dominar o tempo. Conta o tempo de existir com um nó no pescoço cada vez a apertar mais, a deixá-la sem respiração.
É notável as coisas mudas que dizemos. Construimos um império de vozes dentro de cada precipício das veias. Já o seu dia-a-dia não é tão poético quanto a vida de um poeta que num lago inventa estrofes e recria uma paisagem com cores naturais.
De volta à mulher, à pessoa que tem a seu lado na cama alguém que não merece que lhe pronuncie o nome, alguém que joga cartas até altas horas da noite, embriaga-se, gasta o que tem, o que não tem, ri-se perante os amigos e, quando roda a chave no buraco da fechadura, já o silêncio, o sono de um dia cansado, está sendo maltratado. Deita-se na cama como o porco na lama, meio vestido, com suores de besta horrenda.
A mulher dorme na calma de quem precisa de percorrer o sonho, em cómodas respirações. O seu marido, pelo contrário, quer puxá-la para si, violá-la com a força dos bagaços, com desejos contrários à calma de uma nascente.
E aqui que começa o tricotar do inferno. Ela rejeita-o como o padre rejeita ouvir o pecador que ainda por cima é bombista.
- Chega-te para cá minha puta!
A mulher conta a esperança pelos dedos magoados da enxada, pede a Deus um caminho mais a direito.
Mas ele é um brutamontes e despe-lhe a camisa de dormir numa força que jamais será cálculo de balança. Cospe-lhe na cara se for preciso. Quer o seu sexo porque quer. O seu querer é um bastante para que o tenha.
A mulher, que aos domingos se envergonha por ter a cara desmanchada, com um tom de rosa escuro, que denuncia que o seu corpo pesa mais de um lado do que do outro, entrega-se por fim ao destino de ser mulher desfeita.
Foi como se rio avançasse sobre a cidade. Ele em acto de cobrição animalesca, e ela, de olhos fechados, implorando todos os lamentos ao mais sério dos deuses.
A noite passou, o dia começou com as rodas dos automóveis sobre o asfalto de terra batida, a acordar quem dorme e quem sonha.
Excepto uma pessoa: o homem, que eu decide não lhe dar um nome nem tão pouco uns olhos para ver quem somos, o que fazemos, o que podemos fazer enquanto ele dorme, enquanto a sua mulher por graça ou por desgraça sente o peso da enxada, nas mãos, que escureceram com o incumprimento de uma promessa, que é agora, é já que o destino sopra com mais intensidade. Sente mais uma vez a enxada.
Ao homem que lhe não lhe dei olhos, não dei ouvidos, que o pus dormir como uma besta no mar alto, a não imaginar sequer. Que não lhe dei horas para acordar. Mas à mulher sim, dei-lhe uma enxada, um grito, uma vontade de cumprir a sua promessa e resolver o seu destino de uma vez por todas. Silêncio. não faças barulho. Escuta. A mulher entrou no quarto. Que fica de frente ao quarto do menino.
Dei-lhe a enxada para a mão.
Não me culpem se o golpe não ferir.
Quatro três dois um. Fim de uma vida inteira a dizer sim eu faço, sim eu vou, sim senhor qualquer coisa. Depois de um grito mudo, uma música electrónica pôs-se em on.