Hoje é novo dia. como será novo também o dia de amanhã. A sucessão dos dias sempre iguais ao que será o de hoje. Portanto, este dia é o dia de mais um dia. Com sol a surgir da rectaguarda, subindo a prumo num equilíbrio perfeito.
Conhecemos melhor os dias do que conhecemos as noites. Os dias não se apalpam, já as noites sim, temos de ir mais devagar para que o escuro não nos toque em sobressalto. De noite há máquinas que param, o sono divaga pelas ruas, as almas cruzam-se e dizem olá como vais. De dia produzimos riqueza bruta para os patrões, suamos que nem uns camelos.
O homem, que não é meu amigo, que só ouvi falar dele por palavras roucas que me chegaram, adquiriu um vício: passa os dias a escrever, e à noite, ao contrário dos que afirmam que o homem uiva que nem um lobo faminto, ele olha as estrelas como um pai que assiste ao parto da criança que está para nascer.
Não me perguntem como é que ele aguenta dias e dias sem comer, sem ter uma moeda para gastar em pão. As palavras não matam a fome.
Ou será que a ele matam?!
O homem escreve para a gaveta, acumula versos em cima de versos como o senhor da adega empilha as garrafas de vinho, encostadas às paredes frias.
Qualquer dia morre num canto, dizem os vizinhos que, por entre as sebes do muro alto da casa do homem, tentam adivinhar o seu processo de vida. Ou morte?! Mas quase sempre em vão. Pois o homem não tem tempo para a luz do dia.
Deixa-se ficar agarrado à sua velha secretária fazendo prosas que poderá um dia, quem sabe, ou talvez ninguém saiba, para ensinar muita gente enganada.
Há quem ache que ele ficou assim porque uma rapariga do Sul deixou-o, e ele, coitado, teve como sorte a solidão e o silêncio no mesmo copo de vidro.
Agora dedica-se à construcção de palavras, ao ofício duro de ser homem prestes a ser esquecido.
O progresso não está para aturar pessoas que imaginam demais, alguém que pensa que passar os dias a escrever para não sei quem, para não sei o quê, está automaticamente posto de lado.
Os vizinhos deixaram-se de se preocupar com o estado de magreza do homem que, pela sequência dos dias, deverá caber à larga nas camisas dos anos anteriores. Cada vez encolhe mais o seu corpo que qualquer dia vai deixar de o ter. Mas já não o avisam mais.
- A literatura que lhe dê de comer! Se é assim que ele quer, assim o terá!
A incompreensão sempre foi uma mulher muito mal adorada, muito batida. É bem mais fácil apontar um dedo e indicar para que lado vai a solidão.
Mas o que ninguém sabe é que o homem não se derrota, continua na sua, escrevendo, escrevendo, gastando esferográficas e lápis, e ninguém sabe o quê e para quem ele escreve.
- Talvez esteja possuido pelo demonónio, esse pobre genérico de homem!
Foi a vinte e cinco de junho, precisamente, quase onze da noite, quase a virar mais um dia, quase uma estrela metida no coração do homem que se pôs a dançar no parapeito da janela do seu primeiro andar e escorregou contra o destino do chão duro.
- Bem feita! – Disseram os vizinhos assim que souberam a notícia que de tragédia só tinha o tempo que iam desperdiçar para acompanhar o morto ao cemitério.
Como a curiosidade é uma santíssima bisbilhoteira, algumas pessoas quiseram investigar os papéis, as gavetas, os poemas, as prosas que o agora defunto deixara como prova da sua solidão.
Entraram na casa como quem vai pegar num par de frangos. Invadiram a pausa da música silenciosa como quem lança um riso ao condenado. Cuspiram à entrada da casa como quem deita a língua de fora a um outro que vai na estrada.
Entraram. Surpervisionaram o espaço com olhares a fazer bico. Tentando compreender as palavras escritas nas paredes, no chão, no tecto. Palavras escritas com toda a espécie de tinta, inclusive sangue. palavras que se movimentavam da sala para o quarto e do quarto para a cozinha.
Sentiram medo as pessoas que por ganância quiseram saber a revelação do segredo.
Havia umas letras que se sobressaíam, eram os seus nomes, dos que lá estavam a invadir o mestre do silêncio. Temeram. Como a rapariga temeu aos quinze anos quando se ofereceu por engano a um rapaz sabido. E logo depois se arrependeu.
O senhor João ficou a saber numa frase no rodapé que a sua mulher, que ele julgava que ela lhe tinha jurado amor eterno, afinal não era bem assim. Quis apagar o que estava escrito, mas em vão. Quanto mais tentava apagar mais verdades nuas e cruas se lhe vinham aos olhos.
O senhor Augusto ficou a saber ali, que fora a tinhosa da Matilde que envenenara o seu gato naquela noite de Dezembro. O senhor Artur chorou quando soube pelas palavras lá inscritas que a sua filha afinal era do senhor da loja dos cactos. Todos tentaram de uma forma ou de outra arrancar as palavras, aquelas verdades que diziam serem mentiras.
Tentaram derrubar as paredes, tentaram levantar o chão mas, como disse, sempre em vão. Porque a verdade é sempre uma verdade. Embora doa, a verdade tem mais precisão que um canhão apontado, mesmo sem disparar.
Outros que lá entraram, sem machucar a ordem silenciosa das coisas, sem despertar a aranha que dormia na corda das palavras, a esses, as palavras espalhadas pela casa brotavam cheiros a rosas e pinhos, explicava os medos com sorrisos, dava-lhes asas se fosse essa as suas vontades, se fosse esse o seu respeito.
As pessoas que esperavam cá fora para saberem mais notícias, perguntaram:
- Então sempre é verdade que o homem era tolo ?
Ninguém respondeu. Pois cada boca tem a sua verdade, a sua sentença. Concordas?