Camila tem o ar seguro de quem já enfrentou a vida de frente como quem pega o touro pelos cornos. nasceu triste como as àguas de um novembro não menos triste num ano de pouca produção agrícola. passou fome. passou tudo com o corpo esguio e altivo de quem sonha conseguir tocar no tecto da noite e roubar meia dúzia de estrelas. quando o dia de ontem raiou Camila arregaçou as mangas da camisola, pegou na sachola e cavou fundo no quintal. do outro lado do muro o vizinho sempre curioso espreitava cauteloso não fosse ela levantar-lhe o olhar e atirar-lhe com algumas pedras, como já havia acontecido.
cavava fundo camila, com um grande buraco aberto e uma poça de água no lugar do coração, sentou-se e começou a preenchê-lo com as tristes recordações que lhe enchiam o peito: fotografias, cartas, restos, pedaços de uma vida que um dia lhe fora.
a velha Camila com o corpo delgado e enrugado, sujo pelo pó dos dias, desfazia-se hoje do peso que lhe corcundava as costas. a idade não a engana e nem quando a vista lhe turvou ela cedeu à força do tempo que lhe restava.
mulher de grandes paixões nunca ninguém lhe conheceu um único amor e agora, com o seu olho esquerdo Raul não via outra coisa que não fossem cartas de amor, corações de papel, rosas já murchas. nem a curiosidade de Raul era suficiente para quebrar o ritual de Camila.
pouco a pouco o buraco ia-se enchendo, uma vida de entulho, de lixo, de poeira acumulada em cima de móveis de casas que nunca tinham tido o prazer de a ouvir de novo. Camila chorava e o seu coração fraco, que antes sobrevivera inerte a dois enfartes do miocárdio agora morria, lentamente, como um filme que passa em câmara lenta. doía-lhe no peito um buraco aberto agora vazio.
. façam de conta que eu não estive cá .