Ando nervoso. Há já uma semana, o meu pai perguntou-me se podia ajudar. No imediato surgiu inquietude, que se estenderá longo tempo em mim. Disse sim de pronto, apesar de tudo, sabendo que nestas alturas toda a ajuda é pouca. A idade pesa-lhe, mesmo que a lida do campo o mantenha bastante desempenado. Este ano, também ele me parece preocupado, incerto na empresa a que nos propomos. Certo é o tempo, o Inverno avança, traz o frio necessário.
Em jejum de dia e meio, o porco aguarda a sorte, estranho à penitência. A pia e barriga vazias são regime desconhecido, pois, nunca lhe faltaram batatinhas, milho, abóbora, e outras iguarias. Duas vezes ao dia, fizeram dele um bicho alentado, se bem que um tudo-nada largo. As pás altas podem complicar a salga, colocando em risco o investimento. Com antecedência de quinze dias, um vizinho está apalavrado para passar cá em casa. O dia começa cedo, com alguns dos preparativos tardios. À chegada do matador tudo está pronto. Conhecidos de longo tempo, todos se cumprimentam, trocando curiosidades, informações meteorológicas captadas nos ossos, e dados da estatística agrícola da aldeia. Enquanto se apura o gume das facas, o bicho ruge no cubículo, lembra a sorte de outros que, libertando-se dos seus castigadores, fugiram a sete pés, encontrando a sorte mais adiante. Definem-se os do ataque, e os do contra-ataque. Um amigo possante, firmará as patas dianteiras. Pela primeira vez, a minha força deve dominar o chispe de trás, que fica solto. Cabe ao meu pai amarrar o pé que fica preso. No alguidar, há-de segurar a minha mãe.
À mesa, no domingo, dois dias depois do fatídico acontecimento, é uma fartura. O almoço começa com umas papas de sarrabulho. - De bota abaixo! Como dizia o meu avô. Seguem-se um arroz seco, com os miúdos e sarrabulho salteado de cebola, alho e salsa, acabados de sair do fogão a lenha. Na hora dos rojões, louros e mimosos, os que dão o nome à festa, já nem apetece mais que, umas rodelas de laranja e uma salada de alface. No sal, bem atafulhadas e cobertas, ficaram na véspera duas pás de respeito. Irão completar a cura no fumeiro quando os salpicões estiverem prontos. No cimo da caixa da salga, dois lombos apanham um laivo de sabor, apurado em breve, em vinho de alhos. Ensacados em tripas, muito bem lavadas, darão ricos lanches no verão. Em equipa, a desmancha do animal foi rápida. Diz o povo, queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco! É bem verdade, ambas as palavras até usam as mesmas letras.
Na sexta-feira, o serviço ficou em suspenso, quando erguemos o animal, já lavado. Ficará um dia a arrefecer, na frescura da noite. Foi aberto, a bisturi preciso, e fez-se rolar as entranhas na almofada de carqueja. O pêlo, tinha sido aparado, barba cortada à moda antiga, depois do banho. O único da sua vida! Passado a sabão e escova com afinco, na tentativa de remover bem mais do que a sujidade. Talvez o vermelho do sangue, e o chamusco. Dantes, a queima da pelagem, era feita com moliço de pinheiro. Agora é bem mais simples, com o fogo controlado no maçarico. Ligeiramente crestado, raspado, esvaído em sangue… às golfadas. Na lâmina da faca, surgiu um fio, aquecendo o aço. Rápido, propagou-se, tingiu a vermelho a mão e o braço musculado. A tensão é visível, no movimento definitivo do punhal, rasgando a vida. As golfadas engrossam, a vitalidade esvanece-se, lentamente. A força diminui, os pedidos de clemência sufocam, chega um cansaço mortal. Destinado, vem a última inspiração, e… o último sopro de vida.
Boa semana!
Garrido Carvalho
Abril 2008
História que escrevi para o programa "História Devida", da Antena 1, lida na rádio em 23 de Junho.
Me enovelei nas linhas dessa trama bem tecida, a história vai nos envolvendo assim como o ritual da matança do porco, na qual toda família espera e participa, mesmo como simples observador, como dete ter sido com a personagem. Estou encantada com tua grandiosa escrita! adorei ler cada linha.
A título de curiosidade, deste o mesmo título de um maravilhoso livro de Clarice Lispector.