...
E se aquilo existe, tinha de o conhecer, sempre fora curioso.
- “Tenho família, tenho. Aprisionada em retenção do ânimo”, suspirou.
-“Estás a brincar comigo, senhor pedreneira? Deixa-te de filosofias e diz-me que bruxedos me andam a fustigar a consciência das coisas e te dão o dom da palavra, acção e, pelos vistos, pensamento”…
-“Vou-te contar o fado dos seres e deste mundo”, disse-lhe, apontando, -“senta-te aí nesse meu primo rochoso, um dos que acreditou nos Homens”. E continuou.
-“Há muito tempo, quando chegaram os Homens à Terra, exilados compulsivamente pela raça dos Deuses, da galáxia dos sete sois, a que chamam Olimpo, todos os seres que aqui existiam dominavam as faculdades da comunicação e do movimento. O Sopro da vida acarinhara-os como mãe diligente que ama a totalidade dos seus filhos com o mesmo amor e dedicação. Desde sempre, tudo era animado, tudo tinha uma força e presença igual e equitativa no mundo, tudo era vida, em harmonia.
Infelizmente… chegaram os Homens. Traziam a disputa no peito e o egoísmo nas espadas. Logo quiseram repartir os punhados de terra entre si e instalar os primeiros reinos. Como tudo mexia e nada era estável ou estático, tiveram grande dificuldade em marcar limites e criar memória patrimonial. Os Homens são fanáticos pela posse e possuídos pela ambição temerária da riqueza, do sustento do ego com o protagonismo e o ósculo da vassalagem.
Os Homens apreendem rapidamente as circunstâncias e na crueza da sua insensibilidade e desapego à virtude e moral, traçam maquinalmente planos astuciosos para dominarem o mundo. Engendraram um esquema para conseguirem os seus fins. Tinham de acabar com tanta vida: Todos aquelas criaturas irrequietos, em constante alteração das paisagens, de passagem entre lugares. Era um excesso e um obstáculo aos seus senhorios, à sua prepotência!
Os primeiros reis dos Homens, sorridentes, amáveis, seduziram os demais seres, pedindo-lhes um dia de inércia e silêncio para que a sua espécie pudesse estabelecer-se pelo território, segundo os ritos e os costumes que praticavam. Matreiros!
Na sua ingenuidade, foram muitos os que se devotaram à predisposição de ajudar os Homens, expondo os seus espíritos, tão simples, tão humildes… E ficaram imóveis e na mudez, por um dia.
Sem piedade ou hesitação, os xamãs das tribos humanas iniciaram cedo a evocação das artes mágicas, lançaram medonhos feitiços e capturaram aqueles espíritos sem defesa. Pelo Sol perpendicular já haviam espoliado todos os de boa-vontade. Roubaram-lhes o ânimo, o vigor, o alento. Impuseram-lhe o vegetar, o sono o adormecimento, a contemplação sine die, a ausência. O reino vegetal emudeceu e estacou; as espécies animais – mais resistentes – sofreram efeitos colaterais, passando a deslocar-se de formas diversas e a expressarem-se em linguagens múltiplas e inconsistentes; os minerais, salvo raros casos, ficaram completamente inanimados… Que dia terrível. Os Homens acabaram com o equilíbrio espontâneo e ao longo dos tempos têm a crueldade de explorar estes seres sem defesa, estropiados e cerceados da sua liberdade e direitos naturais”. A pedra engoliu em seco.
Ele, pálido e mortificado como se o céu lhe tivesse caído em cima, ergueu os olhos e gaguejou baixinho: -“Desculpa. Desculpem todas estas ignomínias que me relatas sobre os meus. Não haverá alguma forma de desencantamento destes pobres que padecem há milhares de anos?”.
-“Talvez”, respondeu a pedra. E continuou: -”Os cativos estão retidos no lugar que daqui vemos com magra luz. É o Poço dos Espíritos. O buraco escavado nas entranhas da terra onde as bruxas e feiticeiros dos Homens mantêm os espíritos no isolamento escuro e perene, encerrados indefinidamente. Os da minha família também lá estão.”
Ouviu-se de novo o assobio em timbre intrépido. –“Anda Pedra, vamos espreitar esse lugar!”.
(continua)
Andarilhus "(º0º)"
XXII : IV : MMVIII