José Fernando é calceteiro há mais de 15 anos, saiu de casa dos pais quando completou o seu vigésimo aniversário, já lá vão duas décadas e ainda vive no quarto alugado na altura. levantou-se cedo hoje, rondavam as 6h, à porta já o esperavam os seus colegas de trabalho, a chuva miúda não destruia os seus sonhos, a carrinha de sete lugares estava cheia, na bagageiras t’shirts, bonés, cartazes da CGTP contra o novo Código de Trabalho. no concelho esperavam três autocarros que os levariam até Lisboa para por volta das 14 horas se manifestarem entre trabalhadores de todo o país. José Fernando não sabia ler, desconhecia o conteúdo escrito do Novo Cógigo de Trabalho mas sabe tanto da vida que isso lhe dá direito a manifestar-se contra a situação actual em que vive, ele e todos os seus amigos e familiares um pouco por todo o país, a sua intervenção nesta luta era legitimada pelo seu sofrimento ao longo destes 15 anos de trabalho postos agora em causa pelos seus superiores hierárquicos que pensavam despedi-lo em finais deste mesmo ano.
calçou as sapatilhas que o seu tio António lhe trouxera de França, agasalhou-se com o casaco que comprara nos chineses na quinta-feira passada, molhou as mãos e passou-as pelos cabelos compridos que já não viam as mãos de uma cabeleireira desde o início do ano. pegou no seu coração cheio de revolta e antes de sair olhou a fotografia da sua irmã Alzira que morreu com 16 anos assassinada pelo seu namorado que entretanto fugira para Espanha e ainda não tinha voltado, se voltasse corria o risco de conhecer o coração cheio de revolta de José Fernando. pelo caminho, sentado ao lado de Manuel Peixoto cantava músicas que foram conhecidas em tempos de revolução dos cravos, as mãos paradas sobre os joelhos e os olhos perdidos num caminho que antes nunca percorrera. nunca tinha ido a Lisboa e hoje ia lá pelos piores motivos que o podiam mover. uma vez por outra Manuel contava-lhe alguns exemplos de amigos que sofriam tanto ou mais que ele, explicava-lhe o que o Novo Código de Trabalho iria trazer para si, tentava acender o rastilho da raiva que quase ocupava o coração de José Fernando que calado escutava atento.
José Fernando é calceteiro e hoje marcha nas ruas de Lisboa a passo lento segurando um cartaz entre as mãos onde pode ler-se “Alzira morreu com Portugal”, o rosto manchado por algumas lágrimas entre milhares de gritos que ecoam por todo o lado, a CGTP manifesta-se com José Fernando.
. façam de conta que eu não estive cá .